Debates ao avesso: a mediação na arte como um ato criativo
Artigo da revista Sala Preta discute novas formas de mediação artística e como elas afetam a percepção de obras cênicas
Com a intenção de investigar o caráter criativo do próprio ato da leitura de uma obra, e, assim, subverter o modelo tradicional de mediação na arte, a pesquisadora Giuliana Simões, professora do Programa de Pós-Graduação da Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH), e coordenadora do Instável Núcleo de Estudos de Recepção Teatral (INerTE), desenvolveu a pesquisa que resultou no artigo Performatividade Imprevista: propostas de mediação do grupo iNerTE para a construção de um debate pelo avesso. O artigo foi publicado na última edição da revista Sala Preta e abre seu dossiê temático sobre mediação nas artes.
O ponto de partida da investigação são os limites da mediação convencional, onde um especialista fica entre a obra e o público, dando explicações ou respondendo perguntas, o que cria uma relação desigual de ‘especialista’ para ‘não especialista’. Desse modo, o grupo INerTE, que apresenta peças para estudantes da Educação para Jovens e Adultos (EJA), busca novas formas de fazer essa ponte, colocando o público no centro da leitura. Com perguntas feitas para o público — proposta de mediação que o grupo chama de debates pelo avesso —, o espectador é convidado a construir uma leitura da peça a partir de suas próprias referências e das falas de outros espectadores.
A pesquisa chega à conclusão de que a leitura de uma obra traz à tona a subjetividade do espectador e permite o surgimento de sentidos impensáveis da experiência estética. Assim, “conversar sobre arte pode ser tão relevante quanto fazer arte” e as observações resultantes dessa conversa possibilitam que o grupo teatral crie outros modos de fazer o público discutir as proposições artísticas que são apresentadas a ele.
Debate pelo avesso e os estudos de recepção
“Historicamente, a relação entre a cena teatral e o espectador perpassa diferentes contextos socioculturais, que a arte procura confrontar, estabelecer zonas de fruição e romper limites perceptivos. (...) A mediação não se restringe à fruição ou montagem das obras, mas tece relações com o entorno, com o público e com a comunidade”.
Henrique Rochelle, Suzana Schmidt Viganó, Verônica Veloso, editores executivos da Sala Preta
A ideia de um debate pelo avesso partiu de outro trabalho do grupo INerTE, os estudos de recepção. Neles, o público é convidado a escrever bilhetes respondendo perguntas simples, como “o que você nunca deixa de levar quando vai ao teatro?”, que são lidos depois da peça. Então, dá-se início a um debate sobre as respostas à pergunta, no qual o público é o centro da atenção. Isso traça um panorama das formas mais subjetivas ou objetivas que assumem as respostas dos espectadores, já que elas podem ir desde “minha carteira” até “ansiedade” ou “capacidade de me assombrar”.
Os debates pelo avesso, por outro lado, são uma performance completa, que parte da ideia da mediação, mas subverte seu conceito comum. Assim, em vez da conversa com o público no fim de uma peça, onde os atores tiram dúvidas dos espectadores, são os espectadores que são chamados a responder perguntas sobre a peça. Porém, não se trata de uma conversa comum, já que os artistas interferem — por meio da reprodução de cenas ou da criação de cenas com os espectadores —, no decorrer desse diálogo, proporcionando um contexto que rompe com a instauração de uma lógica explicativa e valorizando a multiplicidade de vozes e visões do público.
“Somente a partir das fricções e dos desdobramentos efetivados pelo ato do espectador o objeto se concretiza como obra”.
Giuliana Simões, professora da Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH)
Uma experiência destacada pela autora foi o debate realizado após a apresentação da peça 66 Minutos em Damasco, dirigida por Lucien Bourjeily, que aconteceu na I Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo – Realidades Incendiárias (Tusp, 2013), e apresenta, performaticamente, a experiência de presos políticos na Síria. Nela, os artistas conduziram o debate com perguntas diretas ao público: “como isso me afeta?”, “do que essa cena me lembra?” e deixaram que o público respondesse, em meio às interrupções e intervenções propositais do elenco.
Segundo Giuliana, essas intervenções em forma de cenas se instalam como “corpos intrusos” no debate, o que “evita que o habitual se instaure, rompendo com qualquer linguagem expositiva, explicativa, acadêmica, especialista, educadora, que insista em prevalecer no encontro”. Ela destaca também como, nessa atmosfera criada, a profusão de significantes em tensão entre si “fazia com que a obra como tal se plasmasse, ali, no próprio ato de leitura."
Uma narrativa por outra
Ao mesmo tempo em que abre potenciais sentidos sobre um espetáculo, os debates ao avesso incitam o espectador a mergulhar na própria intimidade, o que dá vida a uma experiência única. Nos 66 Minutos em Damasco, por exemplo, há uma cena onde o público, que é tratado como um grupo de prisioneiros, é levado a um porão no subterrâneo do “hotel” (nas dependências do teatro), e quando perguntado sobre as sensações que essa cena despertou, o público trouxe visões de cenários semelhantes, como um porão mofado de um parente distante ou ainda o DOI-CODI, onde um dos espectadores disse ter sido torturado durante a ditadura militar.
“A leitura da cena corresponde a criações recuperadas pelos espectadores, sempre de maneira diversa e imprevisível”.
Giuliana Simões, Professora da Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH)
Destaca-se no artigo que muitas das impressões mencionadas pelo público, como angústia, constrangimento, ou “riso de nervoso” coincidem com as impressões dos artistas envolvidos na obra. Lucien, o diretor da peça, nascido no Líbano, revelou que muitas frases, hesitações, enunciações feitas pelos espectadores estiveram presentes durante os ensaios. Além de ser motivo de surpresa para os artistas, esse detalhe traz à tona como a recepção pode ser uma atividade criativa.
O contato entre poetas artistas e poetas receptores no fazer artístico
Invertendo os papéis do público e dos artistas na mediação de uma peça, a pesquisa evidencia o momento primordial em que os espectadores revisitam referências próprias, em busca da leitura dos signos artísticos apresentados pela obra. Isso conduz à criação de novos sentidos para a arte, ou mesmo tangencia os sentidos e sensações presentes em seu processo criativo. Em vez de dizer “o que quer dizer o espetáculo?”, podemos nos indagar “como isso me afeta?” e “o que diz o espetáculo sobre mim?” em vez de “o que posso dizer sobre o espetáculo”.
Além disso, Giuliana parte da experiência de 66 Minutos em Damasco para traçar um roteiro de como esse tipo de performance pode ser ainda mais produtiva e proveitosa para o público:
- Decomposição: perceber os elementos que estão no espetáculo, desde os mais evidentes, até os quase imperceptíveis, incluindo aquilo que os outros percebem;
- Transbordamento: deixar-se afetar por elementos que não estavam no espetáculo, mas ainda assim foram percebidos pelo público;
- Uma cena por outra: tanto conceber cenas com os espectadores em ato, quanto utilizar cenas criadas pelo iNerTE no meio de um debate;
- O que nos olha do espetáculo: como a cena nos toca, o que a cena diz sobre nós;
- Tremores estéticos: memórias surgidas a partir do espetáculo, sejam cenas da própria vida ou passagens de outras obras de arte.
Para Giuliana, deixar que o espectador se perca em sua fala, às vezes de forma labiríntica, permite que venham sentidos impensáveis para a estética. Em meio às suas memórias e a impressões que surgem a partir de elementos presentes ou não na peça, a leitura se torna um ato criativo em si mesmo, alimentando a investigação sobre como nos comportamos diante da arte. Para a autora, isso implica em situações limiares e desestabilizadoras, que podem muitas vezes, “fazer tremer os nossos parâmetros de leitura, as nossas mentes e os nossos corpos”.
Revista Sala Preta
A revista Sala Preta é uma publicação quadrimestral do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), vinculado à ECA USP. O periódico foi lançado em 2001 e publica artigos, entrevistas, críticas, resenhas e traduções de pesquisadores que tenham uma visão inovadora do campo das artes cênicas. Além disso, a Sala Preta é uma das únicas revistas da área classificada como A1 pelo Qualis, sistema de avaliação da Capes que indica as publicações científicas com maior reconhecimento.
Em sua segunda edição neste ano, a revista apresenta textos que exploram e ampliam a reflexão e perspectiva sobre o conceito de Mediação nas Artes Cênicas. Dentre eles, destacam-se novas abordagens de mediação que focam na experiência do público, além de iniciativas que conciliam a mediação com a prática do ensino. Para além do tópico central, a revista traz um estudo sobre performance e empatia, além de um artigo que explora a dança dos orixás enquanto performance religiosa e artística.