Do cinema à televisão: o filme Que horas ela volta? em debates de interesse público

Artigo da Revista Rumores analisa aparição frequente do filme na discussão de questões sociais e políticas

 

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Produções cinematográficas podem estimular discussões e gerar sentimentos de identificação no público. É o que acontece até hoje com o filme Que horas ela volta?, lançado em 2015, que faz um retrato das diferenças entre classes no Brasil. No artigo A circulação e as interpretações políticas de Que horas ela volta?, é investigada a repercussão do filme no cinema e na televisão aberta, considerando sua relação com momentos políticos do Brasil e seu uso como instrumento de discussão por parte do público. O artigo integra a 36ª edição da revista Rumores e foi escrito por Eduardo Paschoal de Sousa, pesquisador de pós-doutorado na Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design (FAU) da USP. Eduardo fez mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) da ECA.


A realidade na ficção e a ficção na realidade

Dirigido por Anna Muylaert, egressa do Departamento de Rádio, Cinema e Televisão (CTR) da ECA, o longa-metragem tem chamado atenção de forma recorrente em suas exibições, segundo o autor do artigo. No ano de 2024, ao ser mais uma vez exibido na Rede Globo, na Sessão de Sábado, na véspera do Dia das Mães, alcançou audiência elevada e foi o assunto mais comentado no X, Instagram e Facebook. Após breve mapeamento realizado pelo autor, os comentários eram sobre as semelhanças que o público via entre o filme e a realidade brasileira. 

Frame do filme Que horas ela volta?, com o ângulo da câmera vindo do teto. Duas mulheres, à direita uma mais jovem,  deitada em um colchão no chão, olha para outra mulher deitada em uma cama à esquerda, que fala e gesticula. Os lençóis são claros, a jovem tem uma mão atrás da cabeça e usa uma regata azul. A mulher mais velha está com um pijama branco com  estampa em tons suaves. Atrás de Jéssica há um pequeno gaveteiro branco.
Cena do filme em que Jéssica (Camila Márdila) discute com Val (Regina Casé) sobre o tratamento que recebem dos patrões. Imagem: Reprodução / YouTube

No filme, a personagem Jéssica, que vai a São Paulo para prestar o vestibular para Arquitetura na FAU-USP, é filha de Val, Valdirene Ferreira, interpretada por Regina Casé, empregada doméstica de uma família paulistana de classe média alta. A presença de Jéssica na casa passa a ser um fator de conflitos envolvendo ela, sua mãe e os patrões. O autor explica da seguinte forma:

 

"A ideia de ser um cidadão de segunda classe, sentimento possível de ser superado, principalmente pelo acesso à educação, estava atrelada à personagem de Jéssica."


Eduardo Paschoal de Sousa, pesquisador


A proposta do filme de tematizar a situação de trabalhadoras domésticas no Brasil, bem como o acesso de jovens provenientes dessa classe ao ensino superior, fez com que ele fosse retomado em discussões na mídia, sobretudo na internet, em diferentes momentos. Nas eleições presidenciais de 2022, por exemplo, o presidente Lula afirmou que, graças às políticas de seus governos anteriores, uma empregada doméstica agora podia se alimentar bem e ver seu filho entrar na Universidade. Essa fala, de acordo com a revista Fórum, faz referência aos principais temas retratados no filme de Anna Muylaert.

Anteriormente ao debate, como explica Eduardo, contas oficiais da campanha de Lula já estavam divulgando conteúdos com linguagens mais próximas do público jovem, como uma ilustração em que a personagem Val fazia um L com a mão, gesto muito utilizado por apoiadores de Lula nas campanhas, e estendia uma camiseta vermelha com a frase “Que horas ele volta?”, fazendo alusão a uma das cenas finais do filme.

Composição de frame do filme Que horas ela volta?, à esquerda, e de uma ilustração à direita. No frame, há uma mulher parda, de óculos retangulares, cabelos castanhos, lisos e presos, blusa vinho, avental branco com detalhes pequenos e pano no ombro. Ela está atrás de uma camiseta preta da banda Ramones pendurada no varal, olhando para o lado. À direita, está o print de um post do X que mostra a  ilustração de uma mulher desenhada com traço preto, semelhante à da esquerda, fazendo um L com uma mão e estendendo uma camiseta vermelha escrito “Que horas ele volta?” em fonte branca e com uma estrela branca. Há outros varais na ilustração e a legenda do post diz “ele volta em 4 dias” com um emoji de olhos fechados sorrindo e um de coração.
Imagem: reprodução / Revista Rumores


Eduardo  ilustra sua análise sobre a repercussão do filme com uma matéria do jornal El País, de 30 de abril de 2021, na qual se afirma que Jéssica se tornou símbolo de uma geração de jovens brasileiros que sonhava em entrar para a universidade. O jornal reproduz uma fala de Val para Jéssica: “Tu se acha melhor que todo mundo. Que tu é superior a todo mundo”,  ao que a filha rebate: “Eu não me acho melhor não, Val. Só não me acho pior.”

A matéria apresenta relatos de filhos e filhas de porteiros e empregadas domésticas que conseguiram acessar o ensino superior graças a políticas como o Programa Universidade Para Todos (Prouni) e a adoção de políticas de cotas para estudantes de escolas públicas e para pessoas pretas, pardas ou indígenas.

 

Como compreender as dimensões políticas da obra 

Para sustentar as análises a respeito da circulação do filme, o autor parte de dois conceitos: ancoragem e engate, desenvolvidos por ele em sua tese de doutorado publicada em 2022. Ancoragem se refere a “como o filme se ancora em debates políticos e sociais, a partir de suas representações, em um movimento desencadeado ou potencializado pela circulação das obras”,  e engate vem de percepções “do espectador, que se conecta com a obra, toma-a para si, constrói suas interpretações sobre ela, ou movimenta as interpretações que já estavam presentes e em circulação nas esferas crítica e midiática”.

A ideia de ancoragem, de acordo com o autor, pode ser representada pela escolha de Anna Muylaert de trazer o momento político referente ao conjunto de leis trabalhistas regulamentadas em 2015, conhecido como PEC das domésticas, para o roteiro. Essa escolha indicava que “havia uma procura pela verossimilhança que dialogasse com  o contexto histórico, com as alterações sociais e econômicas pelas quais o país passou naqueles últimos anos, antes do lançamento da obra”. O filme também representa outras movimentações no tecido social que ocorreram próximas ao seu lançamento, como a diversidade de classes sociais que passava a ocupar assentos dos aviões, a partir de uma cena de reencontro entre Val e Jéssica em um aeroporto. No artigo, Eduardo exemplifica o episódio com uma crônica de Antonio Prata referente ao momento.

Frame do filme Que horas ela volta? Cena noturna de uma mulher parda, de óculos e cabelos escuros presos em um coque, usando uma camiseta com letreiro branco e uma calça escura. Ela está dentro de uma piscina com água na altura das canelas, chutando a água. Atrás dela, a parede da piscina tem pastilhas em tons de azul e três lâmpadas brancas circulares alinhadas na horizontal.
Cena do filme em que Val comemora a nota de sua filha Jéssica na primeira fase do vestibular da Fuvest. Imagem: Reprodução / Medium

 

Quanto ao conceito de engate, um dos exemplos trazidos por Eduardo é que muitas trabalhadoras domésticas encontraram identificação com a personagem Val, enquanto as patroas que assistiram ao filme acharam exageradas as reações das personagens Val e Jéssica, considerando a patroa Bárbara acolhedora e permissiva, já que os patrões oferecem um colchão novo para que Jéssica pudesse dormir no chão, no mesmo quarto que sua mãe. O pesquisador também menciona o debate realizado entre estudantes da FAU-USP e Anna Muylaert a respeito do filme, com vários relatos e interpretações de jovens vindos de escolas públicas que haviam conseguido acessar o ensino superior.

Os casos midiáticos que envolvem referências ao filme, reações e interpretações do público contribuem para visualizar a dimensão política e social da obra, sua aproximação com diferentes públicos e o potencial do longa de reunir seus espectadores em torno de temas próximos da realidade brasileira. Com os conceitos de ancoragem e engate, o autor realiza uma análise da dimensão política do filme e de seu diálogo com o tecido social, notando que  a obra se tornou “um marco para as produções do período por sempre ressurgir nas discussões e nos debates públicos”. 

Assim, o autor conclui que Que horas ela volta? se destaca por ser capaz de atualizar suas interpretações à medida que circula, devido a três fatores: a densidade de suas representações, incluindo a figura de Regina Casé e sua carreira; a rede de experiências reais que utilizam o filme como exemplo e que se formam a partir de sua circulação; e o alcance e a difusão da obra em diferentes circuitos de cinema e na televisão aberta, onde alcança audiência significativa ainda hoje.

 

Revista Rumores

A Revista Rumores  – Revista Online de Comunicação, Linguagem e Mídias é um periódico científico publicado semestralmente pelo Grupo de Estudos de Linguagem e Práticas Midiáticas e Metacrítica - Rede de Pesquisa em Cultura Midiática (MidiAto), da ECA.

A revista é voltada para o debate sobre crítica de mídia e comunicação com divulgação de artigos científicos, resenhas e entrevistas. A sua edição de número 36 apresenta o dossiê Crítica da Narrativa Seriada (parte 2), com olhar voltado a produções seriadas de streaming e televisão, como continuação de sua edição anterior.

 

 

 


Imagem de capa: cena de Que horas ela volta? em que Val pensa sobre pedir demissão. Reprodução/ Youtube @Isabela Boscov