Dois pesquisadores da ECA são agraciados com o Prêmio Tese Destaque USP

Trabalhos refletem sobre a ausência do corpo nas artes visuais e o papel das políticas públicas no desenvolvimento cultural 
 

Vida acadêmica

A Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) premiou as melhores teses de doutorado produzidas em diversos Programas de Pós-Graduação da USP no ano de 2021. O Prêmio Tese Destaque USP contemplou as áreas do conhecimento relacionadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Originalidade, relevância e valor agregado ao sistema educacional foram os critérios usados para definir os vencedores.

Dois pesquisadores da ECA tiveram seus trabalhos reconhecidos: Renan Marcondes Cevales levou o prêmio na área de Linguística, Letras e Artes, enquanto Thiago Siqueira Venanzoni recebeu uma menção honrosa nas Ciências Sociais Aplicadas. 

Renan é graduado em Artes Visuais, além de possuir um mestrado nesse campo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No doutorado, ele aprofundou suas reflexões sobre performance e outras linguagens artísticas, tendo realizado seus estudos no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da ECA. Sua tese foi orientada pelo professor Antônio Carlos de Araújo e Silva, com o título Desaparecer: ausências do corpo na arte contemporânea

Já Thiago é formado em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Na ECA, ele havia se tornado mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA), onde também desenvolveu sua tese de doutorado. Sob o título Diversidade social e políticas culturais: práticas coletivas e discursivas no audiovisual brasileiro contemporâneo, seu trabalho foi orientado pela professora Rosana de Lima Soares.

A seguir, conheça melhor as ideias defendidas nas teses dos dois pesquisadores. 

 

Repensando os significados do corpo através da ausência 
 

Em sua dissertação de mestrado, Renan já realizara um estudo sobre o corpo, porém no âmbito das artes visuais. Em seu doutorado, ele também se voltou para o corpo, agora nas artes cênicas, pois acredita que na nossa sociedade essa é uma questão significativa. Hoje, acontecem debates em diversas áreas sobre as liberdades do corpo e o seu papel na busca da representatividade. Por tudo isso, Renan se interessou em pesquisar como o corpo vem sendo representado nas artes, principalmente através da sua ausência. 

Mas como isso é possível? Afinal, parece contraditório dizer que o corpo pode ser representado sem estar fisicamente presente. Em tese, na performance, a presença do corpo é algo crucial e quase óbvio. Renan afirma que “a ideia de uma presença aumentada e intensificada é muito importante. Ela sempre foi para essa linguagem. É como se o artista que trabalha com performance tivesse um grau de presença a mais do que qualquer outra pessoa que lida com o corpo”. 

O pesquisador diz existir uma ideia de que quanto mais presente na cena é um artista, melhor é o seu trabalho, levando-se em conta apenas a sua “presença cênica”. No nosso cotidiano, isso também pode ser visto na maneira como as pessoas se portam perante os outros. Para Renan, “existe uma aproximação perigosa entre presença e visibilidade do corpo”, como se fosse necessário estar o tempo todo visível para afirmar a sua existência. A ausência viria para “quebrar com o hábito que vincula presença à visão do corpo”. 

 

Foto de uma mulher branca nua sentada em um espaço vazio e escuro, de costas para a câmera. Seu corpo é a única coisa que é possível divisar, exceto por sua cabeça, que está completamente na penumbra. Suas costas estão marcadas por linhas muito fundas, como se ela tivesse passado muito tempo amarrada e as cordas tivessem deixado marcas na sua pele.
A performance Bondages (2017), de Marta Soares, foi uma das obras analisadas por Renan. Nesse trabalho, a artista se vale da iluminação para promover um gradual e repetido aparecimento e desaparecimento de seu corpo. Imagem: Reprodução

 

Esse cenário fez com que ele se interessasse por explorar obras que fossem na direção desta quebra, valendo-se de diferentes estratégias para contestar as formas usuais de visibilidade do corpo . Ele ressalta, contudo, que não se trata de mapear um novo movimento, já que a ausência do corpo ainda é rara nas artes. E também não se trata de uma postura revolucionária ou completamente inovadora. No teatro grego, por exemplo, isso já era posto em prática com o uso das máscaras pelos atores, o que configurava uma ausência, ainda que em termos diferentes dos observados hoje. 

Renan ressalta que a ausência do corpo "não implica sua recusa", nem a negação da presença. Trata-se, na verdade, de uma “possibilidade de encontrar espaços ainda não nomeados, nos quais a identidade não está sujeita a captura”. Na tese, Renan analisa cinco obras de diferentes linguagens nas quais enxergou a ausência do corpo. Para que ela fosse atingida, o pesquisador identificou três procedimentos principais: jogos de luz; enquadramento e desenquadramento, dirigindo o olhar do espectador e criando uma certa desorientação, respectivamente; e distorção, apagamento, encobrimento ou substituição do rosto humano. 

Quando o público entra em contato com obras que praticam a ausência, existe uma sensação de estranhamento, visto que o corpo é o elemento mais esperado da performance. Renan aponta que, quando ocorre um evento artístico, é esperado que ele “opere de uma forma específica. Então, se eu vou em uma sala de cinema e de repente alguém sobe perto da tela e começa a cantar, eu vou falar ‘nossa, será que isso deveria estar acontecendo?’ ”. É a partir dessa quebra de expectativa que os artistas repensam os significados da presença e da ausência do corpo.   

Em todas as obras analisadas, Renan identificou gestos políticos, oriundos precisamente da criação da ausência. Retirar o corpo de cena em uma performance torna-se um gesto contrário à ordem das coisas. Como afirma Renan, “desaparecer - ou ao menos desejar desaparecer - pode ser também um gesto de liberdade em um mundo onde tudo precisa se fazer visível para comprovar sua existência”. 

 

O Estado e o estímulo a uma cultura mais diversa 
 

Em sua pesquisa, Thiago buscou compreender inicialmente de que maneira as diferentes modalidades de produção do audiovisual brasileiro se alinhavam a certas perspectivas estéticas. Porém, conforme foi se aprofundando no assunto, ele percebeu que políticas públicas voltadas para a cultura haviam permitido a própria existência de tais arranjos de produção. A fim de compreendê-los, Thiago se debruçou sobre as políticas culturais, em especial aquelas voltadas aos chamados coletivos audiovisuais. 

Esses grupos se caracterizam por apresentar uma estrutura de produção um pouco menos rígida do que a vista em um espaço tradicional de produção, como as grandes produtoras. Aqui, observa-se uma maior maleabilidade em relação às funções que cada profissional exerce – como afirma Thiago, “todo mundo, de alguma maneira, participava de todas as ações da produção”. Mas acima desse critério, o pesquisador levou em conta os grupos que se autodenominavam como coletivos. 

Para ambos os modos de produção, seja no estúdio ou no coletivo, há um projeto de fomento cultural. E isso não é recente. Nos anos 1950, a onda desenvolvimentista também se estendeu ao cinema, o que lhe garantiu uma produção mais bem estruturada em tempos de concorrência ferrenha com Hollywood. Mais tarde, na época da ditadura, o governo se esforçava por formar uma determinada imagem do país. O cinema foi um dos trilhos para se chegar a esse fim, tendo como ápice a criação da Embrafilme, em 1969. 

 

Imagem de uma cena do filme Era o Hotel Cambridge (2016). Quatro homens sentados e outro em pé, sendo um branco e os demais negros, encontram-se em uma sala pequena e apertada. Suas paredes são vermelhas e estão descascadas. O ambiente é pobre e mal iluminado. Ao fundo, perto de uma porta, duas televisões estão empilhadas sobre um móvel.
O filme Era o Hotel Cambridge (2016), de Eliane Caffé, analisado por Thiago, é exemplo de uma produção que flexibilizou os papéis dos envolvidos. Imagem: Divulgação

 

Está em vigor, desde 2010, o Plano Nacional de Cultura (PNC), que tem validade até o fim de 2024. Trata-se de uma série de estratégias e metas para orientar a formulação de políticas públicas que promovam a cultura no Brasil. Para Thiago, um dos aspectos mais importantes do PNC é a defesa da territorialidade. Ele destaca que há “a perspectiva de pensar os territórios como espaços de produção, de invenção, de construção de sentido de novas realidades dentro da produção cultural”

Um outro ponto é a diversidade, característica cultural brasileira sempre explorada nas produções culturais e que se alia à territorialidade. O eixo Rio-São Paulo, por exemplo, recebe historicamente mais investimentos – públicos e privados – do que outras regiões. O PNC leva recursos para locais de fora desse eixo, que abrangem manifestações culturais distintas. A diversidade é vista em termos formais, temáticos e nas diretrizes do plano, que fomentam a variedade de raça, gênero, orientação sexual e origem nas equipes de produção.

A universidade também desempenha um papel relevante nesse contexto, formando pessoas qualificadas para a produção e para a formulação de políticas públicas. “Não só a universidade é transformadora na vida das pessoas, mas ela é o principal eixo de relação de produção. Não é que ela seja necessária para ser um produtor. Mas a universidade é um espaço de expansão do entendimento sobre a produção”, afirma Thiago. 

Ao final de sua pesquisa, ele pôde constatar que não é possível ter uma produção cultural massiva sem uma política pública que a impulsione. No Brasil, a corrente neoliberal que esteve no comando do governo Bolsonaro acredita que os investimentos culturais são desnecessários e até mesmo contrários ao pensamento capitalista. Contudo, Thiago refuta isso, apontando o exemplo da maior indústria cinematográfica do mundo, que por décadas contou com cota de tela e até hoje se beneficia de incentivos estatais como descontos em impostos e film comissions - “Hollywood não existiria sem políticas públicas e sem a presença do Estado”

 

 

 

Imagem de capa: Marcos Santos/USP Imagens