"Emissários de outros mundos": a literatura de ficção científica no documentário
Revista Rumores traz artigo que compara eventos naturais narrados no cinema de Werner Herzog com o horror científico de H. P. Lovecraft
Com a finalidade de estudar os ecos da ficção científica e de horror em obras visuais de não-ficção, os professores Jamer Guterres de Mello, da Universidade Anhembi Morumbi, Lucio Reis Filho, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Laura Loguercio Cánepa, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista (Unip), desenvolveram a pesquisa que resultou no artigo Emissários de outros mundos: ciência, mitologia e horror cósmico no documentário Fireball: Mitos, cometas e meteoros. O artigo faz parte da nova edição da revista Rumores, que traz um dossiê sobre crítica de mídias serializadas, além de trabalhos críticos de obras individuais, como é o caso desse artigo.
A pesquisa faz uma uma análise comparada do documentário Fireball: Mitos, cometas e meteoros, do cineasta alemão Werner Herzog, com o conto A cor que caiu do espaço, de H.P. Lovecraft. A motivação para o trabalho é entender as semelhanças e diferenças entre autores de ficção e não-ficção em seu uso de expedientes literários para criar narrativas que são, ao mesmo tempo, verossímeis e insólitas. Afinal, tanto nos trabalhos de Herzog quanto nos de Lovecraft, vê-se o uso de uma dicção acadêmica a serviço da construção de um mundo onde a natureza é tão grandiosa quanto indiferente à humanidade, com implicações pessimistas para o escritor, mas otimistas para o cineasta.
Cosmicismo: a filosofia da “antinatureza”
“Acredito que o denominador comum do universo não seja a harmonia, mas o caos, a hostilidade e o assassinato.”
Werner Herzog, cineasta
O documentário reflete sobre a presença de meteoritos na história humana em diferentes partes do mundo, investigando como a queda de objetos celestes colaborou com o desenvolvimento de sistemas de crença e sociedades complexas. O fio condutor da narrativa vai dos impactos massivos que geraram extinções em massa, como aconteceu na península de Yucatán, no México, passa por templos na Índia e no Oriente Médio construídos no local de queda dos meteoritos, e termina com relatos de micrometeoritos com estruturas raras e de objetos celestes portadores de matéria orgânica, questionando se tais corpos alienígenas seriam a fonte da vida terrestre.
Os depoimentos, fornecidos por pesquisadores profissionais ou diletantes, reforçam a ideia de que a humanidade sempre buscou associar o sentido de sua existência a eventos naturais que, por muito tempo, foram incompreensíveis. Essa busca de sentido, contudo, é também questionada pelo cineasta, que vê na natureza extrema uma mensagem da insignificância humana. Para os pesquisadores, Herzog retrata “um universo de assombrosa indiferença e deliberada hostilidade para com a humanidade”, no qual os corpos celestes massivos são fonte tanto da vida quanto da destruição, e um lembrete imprevisível da falta de controle do homem em relação à natureza.
“No cerne de suas histórias, sejam ficcionais ou documentais, parece residir o conflito entre o espírito humano e o universo, inerentemente violento e indiferente à vida e aos esforços humanos.”
Jamer Guterres de Mello, Lucio Reis Filho e Laura Loguercio Cánepa, pesquisadores
Essa evocação de fenômenos cósmicos e naturais de grande magnitude e testemunhos excêntricos é comparada pelos pesquisadores com o conto A cor que caiu do céu, de H.P. Lovecraft. A história retrata a queda de um meteorito que contamina o solo, a água, as frutas, as plantas, os animais e as pessoas causando estranhas mutações e, por fim, a desintegração de objetos e seres. “Após quase cem anos da publicação do conto de Lovecraft”, dizem os pesquisadores, “Herzog descreve os meteoritos como pragas do sistema solar, que trazem mensagens indecifráveis do cosmos sempre que se chocam com a superfície do planeta Terra”.
Os autores do artigo usam o termo "antinatureza" para definir o mundo de Herzog, dada sua indiferença para com os anseios e esforços humanos. Essa “não-filosofia”, ou filosofia negativa, assume o ponto de vista do universo, para o qual os seres humanos e a natureza terrestre não fariam diferença, e combina com a visão cosmicista de Lovecraft, que é base de seu universo repleto de deuses e monstros incompreensíveis. “Ela é ao mesmo tempo metafísica (a consciência da insignificância dos seres humanos no cosmos)” e estética, pois se vale da expressão literária dessa insignificância, onde o humano é minimizado e posto em contraste com gigantescos abismos do espaço e do tempo.
O discurso científico em ficção e o literário em não-ficção
“Algo terrível chegou às colinas e aos vales naquele meteoro, e algo terrível – embora eu não saiba precisar em qual proporção – permanece.”
H.P. Lovecraft, escritor
Em sua abordagem, diz o artigo, Herzog transita entre os registros ficcional e documental, por vezes aderindo àquele que Erick Davis define como “estilo pseudodocumentário” – de longa tradição na literatura de horror. Em Fireball, valendo-se de um voice over (narração) que extrapola no uso de adjetivos, Herzog define os corpos celestes como “mistérios arcanos da matéria” e “pedras dos mundos sombrios”, em uma narrativa que mescla o fato científico com a ficção para evocar temas como o desconhecido, o medo existencial, a vastidão do universo e a fragilidade humana.
Nos contos de Lovecraft, os autores comentam, não é raro que o leitor encontre descrições pormenorizadas da geologia e história de locais inóspitos e paisagens monumentais, ou mesmo a descrição de procedimentos e teorias científicas da época, valendo-se de uma dicção controlada, que dá o tom sóbrio de seus contos. Esse expediente literário, contudo, presta o serviço de sublinhar o impacto do desconhecido e da loucura que aguarda aqueles que tentam desvelá-lo.
No conto analisado, por exemplo, a narrativa começa como uma espécie de relato ou relatório de um agrimensor que notou a queda de um meteorito em uma fazenda próxima à Arkham (cidade fictícia), mas que vai dando lugar a um discurso mais intenso à medida que o narrador, junto com o público, presencia o fascínio das cores do objeto ou as consequências do contato com o mesmo, desde mutações físicas até a desintegração completa de objetos e pessoas.
Por um lado, os pesquisadores apontam que Lovecraft usa da dicção cientificista para criar uma aura de confiabilidade para suas narrativas. Por outro, o documentário de Herzog, ao partir de personagens e relatos reais, já nasce investido de tais predicados, mas usa de recursos da literatura para envolver o espectador em uma narrativa cheia de questionamentos. Em ambos, vê-se a mescla de ciência e fantasia sendo usada para criar universos semelhantes nos quais o ser humano, miniaturizado pela grandeza das forças da natureza, já não é mais o centro das mudanças que presencia, com as quais não tem condições de lidar e, em alguns casos, sequer entender.
Uma “sensibilidade catastrófica”
"Inspirado pelo cosmicismo, Lovecraft concebeu uma cosmologia que, de alguma forma, ecoa na obra de Herzog, cujas representações são as de uma natureza inóspita e desinteressada."
Jamer Guterres de Mello, Lucio Reis Filho e Laura Loguercio Cánepa, pesquisadores
Nas histórias do escritor, o universo não cabe à compreensão humana e quaisquer tentativas nesse sentido levam seus personagens à loucura. Contudo, os filmes do cineasta trazem, com a mesma visão da insignificância humana, um certo conforto, que reside no maravilhamento e na aventura em encarar o desconhecido. Neles, dizem os autores, “os elementos de incompreensão e loucura nos confortam quando o discurso da ciência encontra a montagem das imagens, palavras e sons”, além de, por vezes, encenar situações de contemplação e aventura que acrescentam camadas de fantasia às reflexões que produz em seus filmes.
Nos documentários de Herzog, os tropos do horror, o imaginário apocalíptico, as representações de uma natureza hostil e o universo não-antropocêntrico nos permitem reconsiderar a dimensão do conhecimento e impacto humano na natureza. Lovecraft, por sua vez, emprega a linguagem acadêmica e jornalística para construir “uma voz em prosa que explode em horror febril e adjetivo”. Assim, ambos os autores propõem um exercício especulativo de vislumbrar experiências que vão além do mundo objetivo, desvelando os limites da compreensão humana por meio de uma “sensibilidade catastrófica”, como definem os pesquisadores, que por sua vez é expressa pela conciliação entre discurso científico e literário.
Revista Rumores
A RuMoRes – Revista Online de Comunicação, Linguagem e Mídias é uma publicação semestral que, desde 2007, faz parte da Rede de Pesquisa em Cultura Midiática – Metacrítica, dispondo-se a divulgar investigações e reflexões desta área de pesquisa. Seu foco é a natureza da crítica de mídia, os lugares onde ela se encontra e os sujeitos que a praticam, bem como as perspectivas teóricas que os orientam. Para isso, são aceitos tanto as críticas de obras audiovisuais quanto trabalhos que discutem os métodos, objetos e motivações da crítica (metacrítica).
Em sua mais nova edição, o dossiê Crítica da Narrativa Seriada traz o foco para mídias que desenvolvem histórias em partes sequenciais, publicadas ou exibidas periodicamente, como novelas, séries, folhetins, quadrinhos e outros. Além disso, a edição traz dois artigos que não fazem parte do dossiê: a comparação entre Herzog e Lovecraft apresentada na matéria acima, além de um estudo sobre montagem paralela no cinema.
Foto de capa: Matt G./ Pexels.