Igreja transante: como explicar uma juventude conservadora?
Dissertação de mestrado mostra como movimentos religiosos usam tecnologias modernas para difundir ideias conservadoras
Com a intenção de investigar as estratégias comunicativas do grupo evangélico Dunamis Movement e sua participação na campanha bolsonarista em 2022, a pesquisadora Emily Hozokawa Dias, mestra em Comunicação Social pelo Programa de Pós Graduação em Comunicação (PPGCOM) da ECA, desenvolveu, com orientação do professor Richard Romancini, a pesquisa que resultou na dissertação A igreja transante: política, religião e comunicação digital no Dunamis Movement.
A pesquisa é um estudo de caso, feito com o levantamento de centenas de postagens e milhares de comentários nas redes sociais do grupo no período de janeiro de 2021 até dezembro de 2022. A partir da codificação e catalogação desses dados, estabeleceu-se um perfil demográfico e ideológico dos seguidores do movimento. Além disso, traçou-se um panorama das estratégias comunicativas e das mudanças em conteúdos do grupo de acordo com a resposta do público.
As conclusões do estudo apontam para uma influência mútua entre política e religião por meio da comunicação, além de uma tendência dos seguidores do movimento estudado para o consumo de conteúdos conservadores mais extremos.
Por que estudar a juventude evangélica?
Entre as motivações para a pesquisa, Emily indica a preocupação com a ineficácia dos grupos ligados à esquerda na comunicação com os evangélicos quando comparados aos grupos conservadores. “O que me motivou foi um desconforto que eu sentia com a postura de movimentos progressistas em relação aos evangélicos”. Ela conta que esse desconforto se deve ao tratamento dos fiéis, por parte de setores da esquerda, como uma “massa de manobra”, o que não condiz com a pluralidade de pensamentos dentro dos diversos grupos evangélicos. Ela exemplifica seu ponto com uma análise dessa comunicação nas últimas eleições presidenciais:
“A aproximação com os evangélicos foi feita de maneira muito sem cuidado. Então, foi uma carta aberta aos evangélicos feita pelo Lula 15 dias antes das eleições. Que tipo de aproximação é essa com o que está virando a maior religião do Brasil?”
Emily Hozokawa, pesquisadora
A pesquisadora destaca que essa pouca eficácia da comunicação progressista com pessoas evangélicas se agrava, principalmente, se temos em vista a juventude cristã. Enquanto isso, os grupos conservadores fazem altos investimentos nesse público, ao mesmo tempo que consolidam sua presença em diversos estratos sociais e espaços de poder. Com base no levantamento demográfico e ideológico dos evangélicos feito durante a pesquisa, traçou-se um panorama de sua presença dentro e fora das redes. A partir desses dados, a autora apresenta uma projeção da transição religiosa no Brasil, que se tornará de maioria evangélica até 2032, além de gráficos com o nível de renda dos jovens que se declaram evangélicos. Na mesma seção do estudo, a pesquisadora traz dados sobre o crescimento representativo de evangélicos na Câmara, com apenas 1 em 1945, quando somente 3,1 % da população era evangélica, para 85 em 2018, momento em que 32% dos brasileiros se declaram evangélicos.
Com conteúdos variados e comunicação moderna, grupos como o Dunamis atraem jovens cristãos para ideologias e valores dos quais eles podem até mesmo discordar. A título de exemplo, a autora fala sobre um grupo de jovens de quem foi professora de audiovisual. Esses estudantes seguiam conteúdos do Dunamis por interesse em músicos como o cantor Rodolfo, ex-vocalista da banda Raimundos, o que servia como porta de entrada para discursos conservadores sobre família, aborto e feminismo, com os quais ela sabia que os jovens não concordavam.
O que é o Dunamis Movement?
Trata-se de um movimento evangélico voltado para o público jovem, criado pelos pastores Teófilo (Téo) Hayashi, André Tanaka e pelo missionário Felippe Borges, e que usa uma linguagem leve, humor e referências à cultura pop para disseminar discursos de teor conservador. Embora não seja registrado como uma igreja, o grupo tem como principal atividade o trabalho missionário, que é realizado por meio de venda de cursos, palestras, músicas, livros e, principalmente, pelo uso ostensivo das redes sociais.
De acordo com o site do grupo, sua principal intenção é a de promover um “avivamento sustentável”, no qual os jovens assumam o papel de promover uma mudança social baseada na crença evangélica. Entre os valores que o Dunamis difunde em seus treinamentos, está a fé na Bíblia como um guia do que é certo ou errado, a crença no desenvolvimento e uso de poderes sobrenaturais ligados ao evangelho, e a pureza sexual. Além disso, suas bases ideológicas são a teologia da prosperidade, a teologia do domínio e a divisão da sociedade em esferas de influência, conceitos que Emily explica em sua dissertação:
- Teologia da prosperidade: crença na harmonia entre todos os aspectos da vida humana, com um particular destaque para o sucesso financeiro. Emily comenta que é nesse sentido que o ideário de “coaching” e de auto ajuda se mescla com o discurso religioso;
- Teologia do domínio: consiste em uma visão econômica conservadora e que advoga pela implementação de uma teocracia que traga de volta as leis civis do Velho Testamento. Essa visão prolifera sobretudo no segmento neopentecostal, junto com a teologia da prosperidade e a da guerra espiritual, e é um dos fundamentos para a interferência de grupos evangélicos na política;
- Sete esferas da sociedade: como o propósito do grupo é uma transformação social, faz-se uma divisão da sociedade a partir de camadas de importância estratégica, nas quais o Dunamis foca a sua presença e influência. São elas: Família - lar; Religião - Igreja; Educação - escolas; Governo - política; Mídias - comunicações; Artes - entretenimento e esportes; Economia - negócios, comércio, ciência e tecnologia.
Para a autora, que usa a popularidade de Pablo Marçal como exemplo, a combinação dos valores neoliberais de competição e individualidade com a teologia da prosperidade cria uma visão na qual o sucesso financeiro não só “não é pecado”, como é incentivado, o que aumenta a influência de figuras como o político entre os religiosos:
“Pelo menos aqui de São Paulo, a gente viu que o Marçal é um cara que por pouquinho não vai para o segundo turno, e ele é o cara do coaching, né? E é isso: neoliberalismo, coach e religião são um trio que é bombástico.”
Emily Hozokawa, pesquisadora
Mas por que “igreja transante”?
Trata-se de um empréstimo do termo “direita transante”, cunhado por Pedro Ferreira, vocalista da banda Bonde do Rolé e fundador do Movimento Brasil Livre (MBL). Em sua entrevista para a Folha de São Paulo, Pedro explica que ao criar o MBL, pretendeu revolucionar a estética da direita e aposentar a velha imagem do conservador coxinha.
A “igreja transante" é entendida como uma instituição conservadora que usa da linguagem leve e de referências à cultura pop para tornar seu conteúdo mais atraente para a juventude. Isso, aliado à uma estética moderna, desde as roupas até a música, passando pela identidade visual dos eventos e vídeos, faz com que os jovens se sintam acolhidos e motivados a consumir seu conteúdo.
Como a igreja se comunica com os jovens?
Atualmente, o Dunamis se distribui ao redor do mundo, tanto nas redes sociais quanto em ações missionárias como os pockets, missões evangelizadoras que acontecem na universidade, em 10 países estrangeiros. Nas redes, criam perfis em diversas línguas, com a intenção de emular o êxito global de outras instituições religiosas, como a Igreja Universal. De acordo com a pesquisa, o sucesso do grupo entre os jovens é creditado ao seu formato atraente, com bons cenários e captação de som e imagem para as produções do site e redes sociais.
A dissertação também argumenta que, em conjunto com os valores religiosos, o grupo incorpora da racionalidade neoliberal os seus valores de individualismo e competição. Unindo tais conceitos ao da teologia da prosperidade, forma-se um discurso semelhante ao de “coaching”, onde o homem é sua própria empresa e responsável por sua prosperidade. De acordo com essa perspectiva, “se você tem um problema, então isso é culpa sua”, explica a autora. Para Emily, “o individualismo e a internet estão intimamente ligados” e a partir dessa ligação é possível entender porque o Dunamis faz tanto sucesso entre os jovens.
A pesquisadora destaca a capacidade do grupo de mudar suas estratégias e adaptar seu conteúdo às respostas do público, o que pode-se atribuir à agência de mídia a qual o Dunamis é associado: a Big Wave. No gráfico a seguir, a regularidade de postagens indica a importância da busca por audiência e engajamento, enquanto a ausência de publicações no Instagram em um certo período é apontada como, possivelmente, o apagamento deliberado de postagens e a reestruturação da página após queda no número de seguidores, estratégia comumente adotada nas redes sociais.
Quais são as consequências do encontro entre religião e política?
Emily conclui que a constante reconfiguração das redes sociais do grupo indica um profundo entendimento do seu público e das estratégias mais efetivas de comunicação com o mesmo. Desse modo, houve uma expansão global do movimento, com disseminação de seu conteúdo em diversas contas em idiomas diferentes, valendo-se tanto da proximidade com o bolsonarismo quanto do uso de estratégias agressivas de comunicação digital, o que ilustra as interconexões entre política, religião e comunicação no Dunamis Movement.
A lacuna na comunicação progressista com a juventude cristã pode resultar numa falta de identificação e interesse dos jovens. “Por exemplo, quando se trata de uma pauta polêmica, como o aborto, a partir de dados técnicos e uma linguagem pouco acessível”, diz a autora, torna-se difícil a competição com um conservador que, mesmo disseminando informações falsas, “consegue fazer isso de uma forma acessível ao jovem”, por meio de uma linguagem agressiva ou humorística, o que ganha a atenção desse público.
Por fim, a pesquisadora chama a atenção, no uso das redes sociais, para uma “intensificação de conteúdos para o extremismo”, fenômeno em que "os usuários que inicialmente se envolvem com conteúdos políticos mais moderados tendem a se envolver com conteúdos mais extremos à medida que continuam a consumir o conteúdo disponível na plataforma." No Youtube, por exemplo, os canalis líderes de crescimento em audiência são justamente os que propagam conteúdos extremos.
“Na internet, para se obter êxito em relação a número de seguidores e tal você precisa fazer notícias ou apresentar conteúdos cada vez mais extremistas. Quanto mais extremo seu conteúdo, mais chocante o seu conteúdo, mais seguidor você vai ter.”
Emily Hozokawa, pesquisadora
No caso do Dunamis, Emily ressalta o forte crescimento de seguidores no Instagram após a publicação de vídeos com Bolsonaro e a criação, em 2023, do programa Contramão, que apresenta "conteúdos polêmicos e de diretrizes mais alinhadas com a direita, por vezes, de teor radical". Tais movimentos podem indicar que o Dunamis, atento ao comportamento dos usuários das redes, esteja apostando em estratégias para aumentar ainda mais sua audiência e alcance. "A rápida expansão das audiências desses canais sugere que suas perspectivas conservadoras podem estar se espalhando mais amplamente, de modo a influenciar a opinião pública. É necessário, portanto, aprofundar a reflexão sobre o significado de movimentos religiosos alicerçados no ambiente digital, em geral, e do próprio Dunamis, em particular", conclui a pesquisadora.