Marco temporal para demarcação de terras indígenas: colonização?

Artigo da revista Extraprensa explica a influência da colonialidade na questão e aponta caminhos para a defesa de direitos das populações indígenas
 

Comunidade

O marco temporal é uma tese defendida por alguns setores da sociedade que considera válidos apenas os pedidos de demarcação de terras indígenas ocupadas antes da Constituição de 1988. A questão está no Supremo Tribunal Federal (STF) desde agosto de 2021 e já deveria ter sido julgada em junho desse ano, mas foi prorrogada indefinidamente mais uma vez. O desfecho dessa história pode ocasionar problemas muito sérios para as populações indígenas. 

O artigo Contribuições do novo constitucionalismo latino-americano para o debate do marco temporal para a demarcação de terras indígenas no Brasil, publicado na última edição da revista Extraprensa, busca analisar e trazer novos olhares acerca do tema. Ele é assinado pela jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da USP Andréa Rosendo da Silva. A graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestranda pelo Prolam Paloma Gerzeli Pitre também é autora do texto. 

Foto de um protesto, no qual se aglomeram diversos indígenas, com suas roupas e adereços típicos, e também pessoas de outras etnias. Algumas pessoas carregam faixas coloridas com reivindicações. Ao fundo, ergue-se a Catedral de Brasília e outros prédios da Esplanada dos Ministérios.
Protesto de indígenas em Brasília, em 2018, em defesa da demarcação de terras. Imagem: Reprodução/Agência Brasil - Marcelo Camargo

São dois polos dessa disputa, que, na avaliação das autoras, extrapolou a esfera legal para atingir a imprensa, cultura, academia e toda a sociedade. De um lado, estão os adeptos da chamada teoria do indigenato, segundo a qual os indígenas já possuíam as terras antes do estabelecimento do Estado brasileiro, o que lhes dá um direito originário à terra. Além disso, afirma que o marco temporal ignora as perseguições e expulsões sofridas por muitos indivíduos durante o período colonial e o avanço da urbanização. 

Outro grupo, formado majoritariamente por ruralistas e pessoas ligadas à agropecuária, entende que a reivindicação só pode ser feita no caso de terras ocupadas na data de promulgação da Constituição. O artigo 231 define que os povos indígenas têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O argumento a favor do marco temporal é calcado nesse detalhe gramático da lei, que utiliza o verbo ocupar no presente, bem como em uma suposta segurança aos produtores e ao mercado imobiliário que o marco seria capaz de trazer.

As autoras apontam que, ao contrário do que defende o setor ruralista, os indígenas não possuem uma grande quantidade de terras. Tendo como base estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto Socioambiental (ISA), “é incorreto afirmar que as demarcações comprometem o estoque de terras disponíveis para a produção rural", diz o artigo. Quase a totalidade das terras indígenas encontra-se em áreas isoladas e sem atributos para a agropecuária. Então por que a insistência em defender o marco temporal?

 

Lógica colonial no mundo capitalista 
 

As ideias do sociólogo peruano Aníbal Quijano são utilizadas para compreender como a globalização de hoje se fundamenta em princípios que remontam à chegada dos colonizadores à América. Para ele, o colonialismo, que dispõe os indivíduos em hierarquias, e a visão do europeu como detentor do progresso e da civilização formam as duas linhas principais do domínio exercido sobre as populações indígenas e negras. 

No entanto, essas duas linhas de dominação não deixam de existir com o fim do período colonial. Pelo contrário, elas ainda atuam como forças organizadoras na sociedade contemporânea. “Para entender a colonialidade é preciso entender o mecanismo do racismo estrutural à brasileira, que perpetua, na atualidade, a lógica colonial de que algumas identidades (negras e indígenas) devem ser subalternizadas”, destacam as autoras. 

Vale dizer que a colonialidade, capitalista e eurocêntrica, não se observa apenas nas relações sociais, mas também na esfera do conhecimento. Historicamente, os saberes dos povos não-europeus foram menosprezados e taxados de bárbaros; apenas o conhecimento vindo da Europa era considerado de qualidade e verdadeiramente científico. Somada a outros mecanismos, essa visão acabou por silenciar as vozes indígenas, únicas e diferentes das outras. 

Esse fato pode ser observado na legislação brasileira. Os indígenas não conseguem penetrar no mundo jurídico, pois apesar de a Constituição e outras ferramentas como o Estatuto do Índio (1973) e a Funai preverem alguns direitos, elas não são capazes de refletir as demandas desses indivíduos. Afinal, eles não foram ouvidos no processo de elaboração dessas medidas. Assim, “o legado do projeto moderno colonial permanece submetendo sempre os mesmos grupos a formas atualizadas de desrespeito e extermínio”, afirma o artigo, como acontece no caso do marco temporal. 

 

Como dar mais espaço para as visões indígenas
 

Nos últimos 30 anos, alguns países da América Latina vêm adotando uma linha constitucional que se diferencia de outras nações, as quais possuem uma carta baseada nos ideais europeus e estadunidenses. Esse movimento, chamado de novo constitucionalismo latino-americano, busca integrar grupos esquecidos e a sua visão de mundo aos processos de uma constituinte e de outras decisões da sociedade.

Foto de vários homens indígenas performando uma dança típica. Todos vestem uma espécie de colar branco, algo que parece um shorts curto com faixas coloridas amarradas na cintura, bem como outras faixas de diversas cores amarradas na altura do tornozelo e um pouco abaixo do joelho. Eles dançam sobre um chão de terra batida. Ao fundo, é possível distinguir uma habitação, palmeiras e outras pessoas, que parecem assistir a dança.
Imagem: Reprodução/Agência Brasil - Anne Vilela 

As autoras chamam a atenção para a Constituição do Equador, do ano de 2008. Ela segue uma diretriz, ligada ao movimento, chamada de buen vivir, que consiste em uma relação harmônica com a natureza e é contrária à noção eurocêntrica de desenvolvimento. Um outro ponto importante dessa constituição é a maneira como ela define a natureza - ela não é entendida como dependente do ser humano, mas como um sujeito de direito. 

“É possível notar que esses direitos reconhecidos à natureza não são condicionados de alguma forma aos prejuízos causados a seres humanos. O direito em tela deve ser respeitado independentemente de ações contrárias a ele ocasionarem impactos (sejam eles positivos ou negativos) para os seres humanos”, observa o artigo. 

Já a constituição brasileira não considera a natureza como detentora de direitos. Isso permite, por exemplo, que a tese do marco temporal seja levada a cabo, já que a terra constitui somente um meio de produção e uma fonte de lucro. Para os indígenas, não é assim. Em sua cultura, a terra é um elemento sagrado, que se conecta com questões de ancestralidade e individualidade. 

Ao apresentar o exemplo de outros países latinos, as autoras esperam que ele possa servir para o Brasil e permita uma mudança na maneira como enxergamos a relação entre os povos indígenas e as suas terras. Outro argumento é que a ideia de defesa dos direitos da natureza, e não só dos indígenas, pode influenciar na decisão do Marco Temporal. 

 

Revista Extraprensa 
 

A revista Extraprensa é uma publicação semestral ligada ao Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc). Ela publica materiais da área de cultura e comunicação, abordando temas como diversidade cultural, cidadania e mídias alternativas. A edição atual traz artigos apresentados no V Simpósio Internacional de Cultura e Comunicação na América Latina (Siccal), realizado em novembro do ano passado. 

A revista está com uma chamada aberta para a submissão de artigos sobre o tema Plataformização da cultura: criação, produção, trabalho e fruição em tempos de digitalização da economia. Os trabalhos devem ser encaminhados até o dia 31 de outubro, pelo email extraprensa@usp.br. Para mais informações, entre no site do periódico

 

 

 

Imagem de capa: Reprodução