O Direito “dos manos”

Artigo de docente e pesquisadora ecanos investiga como os meios de comunicação de massa contribuem para a distorção da ideia de Direitos Humanos

Vida acadêmica

Não é raro ouvirmos alguém criticar ou desfazer-se dos Direitos Humanos. No Brasil, por exemplo, prevalece uma ideia de que eles são feitos para “defender bandidos”, ou de que é uma bandeira exclusiva da esquerda, como atesta a pesquisa realizada em maio de 2018 pelo Instituto Ipsos. Passados mais de 70 anos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), mesmo com várias notícias a respeito de violações nos mais diversos cantos do planeta, esse conjunto de normas criado no pós-Guerra não foi totalmente assimilado pela população brasileira.

Janaina Soares Gallo, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) e Anderson Vinicius Romanini, professor do Departamento de Comunicações e Artes (CCA) da ECA, procuraram investigar a origem dessa leitura equivocada sobre o tema no ensaio "Direitos humanos para humanos direitos": como um conceito distorcido de Direitos Humanos se dissemina como meme. Os pesquisadores partem do conceito de meme tal como cunhado por seu criador, Richard Dawkins, em 1976, no livro  O Gene Egoísta. Como os genes na genética, os memes são a unidade mínima de informação para a memória humana, capazes de transmitir ideias que atuam como replicadoras de formas de pensar e sancionam práticas e padrões culturais. 

Ao olhar para a frase “Direitos Humanos para humanos direitos”, tão disseminada no falar cotidiano brasileiro, como um meme, os autores inferem que essa frase contém “aspectos psicológicos, sociais e econômicos que envolvem a sua propagação no imaginário”, e que tem nos meios de comunicação um instrumento poderoso de propagação. Graças a suas características – linguagem simples e reproduzível – ela se dissemina em diferentes mídias e adquire grande alcance entre a população.

A ideia de Direitos Humanos existe desde a Revolução Francesa. Contudo, é só após o desastre humanitário cometido pelo fascismo e nazismo na década de 1940 que ela ganha maior relevância. A partir de então, as principais nações do Ocidente criaram tratados que visavam garantir a integridade humana e física, os direitos fundamentais do homem à moradia, à defesa e e contra qualquer tipo de discriminação em função raça, sexo, origem nacional e regional , fé religiosa, opinião política ou condição social. Ainda assim, em muitos lugares do globo ocorrem violações sistemáticas por diversos atores, incluindo governos, como o dos Estados Unidos da América (EUA), com a violência policial contra os negros e violações aos presos de guerra cometidas no Iraque, no Afeganistão e em Guantánamo (Cuba).

 

“Bandido bom é bandido morto”
 
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Imagem: reprodução/ Blog Notícias Populares

A segunda metade do século XX assistiu ao inchaço da periferia urbana nas grandes cidades brasileiras, com enormes contingentes de pessoas advindas do campo e do Norte e Nordeste do país chegando ao Centro-sul em busca de melhores oportunidades. Com a popularização do rádio e da imprensa escrita, os meios de comunicação enxergam na violência um canal para atingir a nova sociedade de massa. Assim, o jornalismo policial ganha destaque dentro do gênero sensacionalista, dando ênfase a crimes que aconteciam na vida urbana, como assassinatos, estupros e roubos, eventos vistos como “chamariz para aumento de audiência e vendagem nos meios de comunicação”. Nesse período, destaca-se o jornal Notícias Populares (1963 - 2001), com suas fotos chocantes, e os radialistas paulistas Gil Avilé, o Beija-Flor, e Gil Gomes, que fizeram fama com um estilo único de narrar crimes “de forma teatralizada”.

O período compreendido entre o final do regime militar (1964 - 1985) e o retorno à democracia é encarado como o momento em que as distorções sobre Direitos Humanos ganham ainda mais popularidade na medida em que, como resposta à explosão da violência nos grandes centros urbanos, houve uma intensificação da repressão policial e o surgimento dos grupos de extermínio. Ao mesmo tempo em que os movimentos sociais e parcela do jornalismo denunciavam o abuso de poder praticado pelos órgãos repressores do Estado na periferia, políticos conservadores – como o radialista Afanásio Jazadji – e programas de rádio e televisão ridicularizavam esse tipo de reação e crítica, fazendo com que as mesmas perdessem valor no senso comum.

Imagem em diagonal do ex-deputado Afanásio Jazadji de óculos, terno bege e gravata preta e marrom sentado à mesa próximo ao microfone legislando. na Alesp. Atrás, há uma cortina de igual fundo bege. e ao seu lado uma cadeira vazia.
Ícone do rádio paulista com programa que expunha a criminalidade, Afanásio Jazadji legislou na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) por 20 anos (1987 - 2007), tendo como bandeira a pauta da segurança. 
Foto: Roberto Navarro/Alesp

Ilustrando em parte a atuação do Estado brasileiro nesse período, há alguns meses o canal de streaming GloboPlay lançou a série Rota 66 - A Polícia que Mata, inspirada na obra homônima do jornalista Caco Barcellos, vencedor do prêmio Jabuti em 1993.  O livro-reportagem denuncia as execuções da Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (Rota), o grupo especializado do 1º Batalhão de Policiamento de Choque da polícia paulista, cometidas entre os anos de 1980 e 1992. Criada em 1970, a Rota surgiu como uma resposta da polícia do Estado de São Paulo ao crescimento da violência na área metropolitana e foi durante anos usada por políticos para autopromoção em suas campanhas.

 

Apontamentos sobre hoje e o futuro
 

A violência urbana segue sendo um dos grandes desafios da sociedade brasileira. Ela continua em evidência nos meios de comunicação em massa, perpetuando na sociedade a sensação de insegurança e a cultura do medo, inclusive, com anúncios de serviços voltados para a proteção residencial – como câmeras de segurança, alarmes eletrônicos e seguros de vida – em programas do gênero.

Em 2015, um levantamento da Comissão Permanente de Direito à Comunicação e à Liberdade de Expressão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos tomou por base o monitoramento de 28 programas, produzidos e transmitidos em 10 capitais das cinco regiões do País. O resultado apontou um “volume significativo de violações e infrações, evidenciando o caráter não circunstancial das práticas anti-humanistas e antidemocráticas desse modelo de comunicação em franca expansão no Brasil”. O discurso sistemático de desqualificação do campo de defesa dos direitos desrespeita, inclusive, os parâmetros jornalísticos e a linha editorial que as emissoras dizem seguir, contribuindo para a perpetração do meme no senso comum.

O contexto social brasileiro, marcado pela enorme desigualdade social e a falta de reconhecimento do outro como portador de direitos, serviu para minimizar a gravidade da violência policial nos arrabaldes das grandes cidades e a precária situação da população carcerária. Não é demais lembrar que o Brasil, desde a Constituição Federal de 1988 – carta que rompe com o autoritarismo da ditadura militar –, preza pela dignidade humana e pela institucionalização dos Direitos Humanos, sendo signatário dos mais variados tratados internacionais sobre o tema. 

O artigo aponta para iniciativas como a Justiça Restaurativa, instituída desde 2016, e a Educomunicação, que tem como um de seus principais objetivos a educação por meio de recursos de mídia numa abordagem crítica dos meios de comunicação, como estratégias para transformar a visão da sociedade civil, quebrando esse ciclo do meme, “para que uma compreensão maior sobre direitos se dissemine em todos os estratos sociais”.

 

 

 


Imagem de capa: Agência Brasil