Os estranhos corpos de Cristo: entre a religião e o queer

A partir da obra de três diretores de cinema, pesquisador discute a relação entre o erótico e o sagrado

Comunidade

Renato Trevizano dos Santos, em sua pesquisa de mestrado, assumiu uma tarefa delicada: discutir a conexão entre representações cristãs, erotismo e a sétima arte. Os estranhos corpos de Cristo: reflexões sobre mito, cinema e arte queer a partir de Pasolini, Jarman e Rodrigues busca colaborar para o diálogo entre dois temas que para algumas pessoas não devem ser misturados: o sagrado e o carnal. 

Renato é graduado no Curso Superior do Audiovisual pela ECA e, já em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), explorou esse assunto. Na época, estudou o realismo fantasmagórico e a presença do queer na obra do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul e do taiwanês Tsai Ming-liang. O cinema dos dois diretores era influenciado pelas religiões praticadas nestas regiões asiáticas, como o taoísmo, o budismo e o xintoísmo, além de práticas animistas.

No mestrado, estendeu a discussão sobre a representatividade LGBTQIA+ e os “corpos queer” — corpos que não se conformam aos padrões de gênero e sexualidade — para outras religiosidades.

 

“Foi uma demanda, uma necessidade que eu tive de pesquisar esse assunto, devido às urgências do presente. Quis entender como o discurso religioso é utilizado como instrumento de opressão. Olhar para o Brasil e para o cristianismo, que é a base tanto das nossas proibições, quanto das tentativas de libertação”.

 

Renato Trevizano dos Santos, mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA

 

Entre suas motivações, está o caso da modelo Viviany Beleboni, mulher transexual que desfilou crucificada como Jesus em um carro elétrico na Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo em 2015. Após o acontecimento, a modelo foi vítima de perseguições e ameaças de morte. 

 

A pesquisa
 

Renato trabalhou centralmente sobre três filmes: O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini (1964), O Jardim, de Derek Jarman (1990) e O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues (2016). Escolheu os três porque compartilham algumas características na forma de narrar e um tom poético que o interessava. 

 

Trecho de O ornitólogo. Imagem: Reprodução/O Ornitólogo TA: Em uma floresta, um homem branco, vestindo apenas uma cueca branca, está amarrado a uma árvore.
Trecho de O ornitólogo. Imagem: Reprodução/O Ornitólogo

 

O Ornitólogo conta a história de Fernando (Paul Hamy), um homem de 40 anos que se dedica à observação de pássaros. Ao navegar em um rio, a correnteza vira sua embarcação e o lança em uma jornada de erotismo, natureza e religiosidade. Os outros dois filmes, de forma semelhante, unem o sensual ao sagrado por meio de uma linguagem lírica marcada por referências e simbolismos. 

Em frente a um altar, Ventura profana, uma mulher negra de cabelos loiros, estende os braços para os lados. Usa um collant preto.
Ventura Profana em frente a um altar, no clipe de EU NÃO VOU MORRER.

Segundo Renato, a pesquisa não olha para uma história que se fechou, mas para uma questão aberta e efervescente. O pesquisador cita como exemplos clipes musicais de artistas como Ventura Profana, Getúlio Abelha, Linn da Quebrada e Jup do Bairro, que fundem o queer e representações de figuras religiosas e míticas tanto da religiosidade cristã como de matrizes africanas.

"Essas obras são pontos luminosos em uma história no geral sombria e sinistra na relação dos corpos e corpas LGBTQIA+ com o cotidiano religioso, especialmente com as religiões dogmáticas", diz o pesquisador. "Eu acredito que a sensualidade e a religiosidade caminham juntas sempre, independente do que a religião postula ou do quanto as religiões neguem essa sensualidade”.

Sobre a importância de falar a respeito dessa arte e dessas temáticas, Renato comenta:

 

"A gente vive num país repressivo e vozes destoantes por vezes sofrem as consequências dos seus desvios. A gente vê na história perseguições aos LGBTQ+, de assassinatos, agressões e violências. Tudo isso está no plano de fundo, passa por mim, passa pelo meu corpo. Mas olhar para esse passado e para essas pessoas que lutaram e colocaram suas vozes é encorajador."

Renato Trevizano dos Santos

 

 

Imagem de capa: Reprodução/ O Evangelho Segundo São Mateus (1964), de Pier Paolo Pasolini