Paciente Simulado: contribuição das artes cênicas para a formação de futuros médicos

Dissertação de mestrado conta os bastidores da prática em que atores e atrizes participam de provas do curso de Medicina

Vida acadêmica

Em 1960, nos Estados Unidos, o neurologista e educador Howard S. Barrows inventou um novo procedimento para avaliar seus alunos: convidar atores e atrizes para serem pacientes simulados e pedir que os estudantes fizessem o atendimento como verdadeiros médicos. Com o passar dos anos, o método se desenvolveu e se expandiu para o mundo, até chegar, na década de 1990, ao Brasil.

Em 2020, o graduado em Artes Cênicas pela USP Emerson de Barros Rossini decide voltar à Universidade para analisar essa nova possibilidade na esfera do teatro. Hoje mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA, ele foi um dos responsáveis por coordenar, selecionar e treinar atores e atrizes para a prova prática de admissão na residência médica da Faculdade de Medicina no Hospital das Clínicas. 
 

“Consultei profissionais na área de Medicina e nas Artes Cênicas. Foi consonante! Havia uma sutura a ser feita, uma cena a ser montada.”


Emerson de Barros Rossini, mestre em Artes Cênicas pela ECA, em sua dissertação de mestrado

 

O resultado dessa pesquisa foi a dissertação Expansões da teatralidade: a participação de atores na prova de admissão de residentes e de especialistas no Hospital das Clínicas de São Paulo e no Revalida do Governo Federal. Neste trabalho, Emerson busca reforçar a interdisciplinaridade entre as artes e a ciência e extrapolar zonas que separam realidade e ficção.

 

Como funciona?

O uso do Paciente Simulado visa, entre outros objetivos, melhorar a comunicação dos estudantes, aumentar a autoconfiança e a empatia dos candidatos e diminuir os níveis de ansiedade — sentimento comum durante os primeiros atendimentos. A ideia é estimular a tomada de decisões em um ambiente seguro para cometer erros, o que facilita a identificação de potencialidades e fragilidades da consulta. Para isso, o uso da dramatização pode ser estruturado de diferentes formas dentro de cada instituição.  

Nos casos abordados por Emerson, a avaliação se dava em locais preparados para reproduzir o cotidiano dos consultórios dos hospitais, que poderiam sofrer adaptações conforme as necessidades de cada roteiro. Em cada um desses locais, ficavam o candidato, dois médicos avaliadores e o ator. Os estudantes dispunham de oito minutos para resolver cada questão e, em seguida, deveriam se dirigir a um novo cenário, até que completassem cinco atendimentos.

Paciente Simulado

Montagem com 4 fotos. No canto superior esquerdo, um homem se apoia em uma mesa, há um papel sobre ela. No canto superior direito, há três mulheres: uma está sentada em uma maca, outra está mexendo em objetos apoiados em uma mesa e a terceira está em pé observando. No canto inferior esquerdo, um homem usa um estetoscópio em um homem sem camisa que está deitado. No canto inferior direito, um homem coloca a mão nas costas de um homem, que também não veste camisa.

Estudantes de medicina e atores e atrizes em atendimento simulado

 

Para cada simulação, o candidato recebia uma espécie de “prontuário do paciente”, que funcionava como um conjunto de instruções e informações essenciais para a compreensão da situação, como detalhes do caso e supostos resultados de exames previamente realizados. A partir daí, “ele também se torna um intérprete de si mesmo, atuando e mostrando sua melhor versão do papel de ‘médico’ que ele possa fazer”, segundo Emerson.
 

O papel dos atores
Foto de um atendimento simulado. Um homem branco de cabelos curtos e escuros está sentado em uma maca e apoia um dedo em seu próprio nariz. Uma mulher está em pé na sua frente, ela é branca e tem cabelos longos e escuros. Ao fundo da sala, um homem sentado em um banco assiste à cena, ele é branco e tem cabelos curtos e escuros.
Os candidatos são orientados a aplicar os métodos aprendidos em sala de aula na prática

O pesquisador conta que, ao perguntar aos atores por que eles desejam participar dessas avaliações, obteve respostas que, na maior parte das vezes, apontam para a sensação de poder interferir diretamente na melhoria do atendimento médico: “um sentimento de participação social direta proporcionada pela profissão de ator".

Emerson afirma que o impacto do trabalho do artista na vida da população é histórico, e que “o ator sempre foi uma peça-chave na formação cultural de uma sociedade.” Ele complementa explicando que as demandas sociais de cada época se relacionam com as variadas formas de teatro, revelando, assim, diversas possibilidades de pensar o homem no meio em que está inserido.

Nos casos dos pacientes simulados, as encenações devem ser elaboradas de modo a mesclar aspectos de realidade e ficção, sobrepondo e emparelhando algumas particularidades. Tudo isso a fim de chegar o mais próximo possível das situações com as quais o futuro médico poderá se deparar e também para trazer mais verossimilhança à simulação.

Segundo o autor, em alguns roteiros, após a apresentação das instruções obrigatórias, é solicitado que os atores respondam às demais questões feitas pelo candidato de acordo com sua vida pessoal. Dessa forma, unem-se “dois conteúdos transpostos da vida real para cena, tencionando-se e criando um terceiro tão real quanto [os outros dois].”
 

Simulação da simulação
Foto de uma mulher e de um homem sentados próximos a uma mesa. A mulher é branca, tem cabelos lisos e escuros, usa óculos e está vestida de preto. O homem é branco, tem cabelos curtos escuros e veste uma camiseta branca. Ela está apoiada na mesa olhando para o rapaz. Ele está olhando para baixo com as mãos na cabeça e os braços juntos ao corpo.
Nessa cena, o ator apresentava gestuais de apreensão, o que deveria chamar a atenção do candidato

Airton Dupin, formado em Artes Cênicas pela ECA, foi um dos artistas chamados para participar das atuações. Há 30 anos, ele e Emerson se conheceram no teatro e, algum tempo depois, ficaram sabendo da prática do Paciente Simulado por meio de uma aluna que trabalhava no Hospital das Clínicas. Emerson ingressou nessa modalidade em 2008 e, posteriormente, decidiu chamar o amigo e outros colegas ecanos para participar da proposta. Airton revela que, inicialmente, as preparações eram bem mais simples, eram praticamente uma conversa. Um dia antes da prova, os intérpretes se encontravam com médicos e discutiam sobre o que poderia ou não poderia ser dito, para entenderem o limite da improvisação. 

O artista explica que, como eram atores mais experientes, o preparo era mais direto e se assemelhava aos de outros tipos de encenação. “A gente pegava o papel e já tinha que fazer. E já estávamos muito acostumados a fazer isso em teste para comercial ou para cinema. A gente vai lá, pega uma síntese do personagem e faz".

O método, contudo, foi sendo desenvolvido e aprimorado na comunidade acadêmica, assumindo cada vez maiores responsabilidades. A fim de igualar as condições de prova e uniformizar as atuações, itens tão importantes nesse tipo de avaliação, os intérpretes agora passam por uma série de treinamentos específicos para esse trabalho. Emerson relata que é um grande desafio padronizar gestos, intenções e verbalizações, além de ser necessário sempre levar em conta as possibilidades de improvisação.

Embora possa parecer descomplicado para alguns, ser um Paciente Simulado exige muito do intérprete fisicamente, por isso a preparação é tão importante. Airton afirma que, para ele, os papéis mais exigentes são aqueles que envolvem imobilização ou respiração arquejante. 

O ator relembra a vez em que teve que representar um personagem que chorava o tempo todo em mais de 50 performances. “Cada um que entrava ali eu berrava, chorava, batia a cabeça na parede, porque tinha que fazer bastante escândalo. E tinha essa coisa do padrão, então não dá para fazer nenhum ‘meia boca’. (...) A gente mantinha o frescor da personagem na mesma intensidade até o último candidato.”
 

Cenários e efeitos especiais
Foto do local de provas sendo montado. Algumas divisórias estão encaixadas. Diversos objetos estão espalhados pelo local, como macas e bancos. Quatro homens vestidos de coletes laranjas estão trabalhando.
A Escola Paulista de Medicina mobiliza, todos os anos, equipes para cuidar da preparação das provas. Imagem: Reprodução/YouTube

Além da presença de atores, há um esforço para disponibilizar aos candidatos espaços próximos da realidade. A criação de cenários auxilia a colocar os candidatos diante de situações concretas e a estimular os seus sentidos, especialmente a visão, o tato e o olfato. Além disso, móveis, equipamentos e aparelhos são incluídos e realocados nos cenários de acordo com cada avaliação.

Quando há a necessidade de realizar exames mais invasivos ou de simular ferimentos mais graves, é utilizada a técnica da moulage, que consiste em caracterizações de feridas no intérprete ou em peças avulsas. Dessa forma, pode-se reproduzir cicatrizes, odores e texturas usando maquiagem e outros produtos que provoquem essa sensação de “efeitos especiais”.

Sinais como hematomas, contusões e incisões podem ser criados em peles de plástico ou de borracha que são aplicadas nos pacientes. O autor enfatiza que, nesses casos, ainda é preciso estudar noções de anatomia e fisiologia, para compreender como a cor pode transmitir o tempo do hematoma e a gravidade da contusão, por exemplo.

Paciente Simulado 2

Montagem de duas fotos. À esquerda, uma pessoa branca está em pé segurando uma seringa em frente a uma maca. Na maca, há outra pessoa branca deitada. Seus joelhos estão vermelhos. Na imagem à direita, uma pessoa branca está inserindo uma agulha em uma mão artificial. Uma pessoa está deitada em uma maca ao lado da peça.

A técnica da moulage, utilizada pelos artistas na confecção de hematomas e feridas, é muito antiga, sendo aplicada desde os tempos dos Faraós egípcios

 


Desafios na prática do Paciente Simulado

Para Emerson, a participação dos atores nas avaliações é necessária para o desenvolvimento de mecanismos emocionais, mas não é o bastante. Segundo ele, faltam disciplinas obrigatórias na área médica que contemplem os aspectos humanísticos pois, atualmente, a maior parte delas é oferecida como optativa.

Airton conta um episódio em que o candidato tinha excelente domínio teórico e usava técnicas extremamente avançadas, mas era frio e apático com todos os personagens envolvidos, inclusive com a paciente grávida. Nessa simulação, Airton era um enfermeiro que deveria orientá-lo, mas que, na realidade, não estava sendo ouvido. Em certo ponto, o ator chegou a gritar com o candidato. “Foi para ele perceber que eu estava ali. Mas depois a banca até me chamou, [e falou] ‘não, não sei se você pode fazer isso’.” Casos como este instigam questionamentos a respeito da postura médica, e se uma ótima formação acadêmica é o suficiente para um atendimento ideal.

Foto de diversas pessoas fazendo uma performance em um estúdio. Cada um faz uma pose diferente, mas olham na mesma direção. A maioria veste roupas escuras.
Estudantes e docentes com quem o autor conversou relataram ter dificuldades para encontrar grupos de atores com experiência para aplicar a técnica. Imagem: Mariana Chama

Além dos aspectos socioemocionais, é preciso levar em conta as desigualdades regionais que permeiam o Brasil e impactam a prática do Paciente Simulado. Em um país tão extenso e heterogêneo, as expressões artísticas podem surgir de infinitas formas. Emerson menciona a cidade de Lagarto, no interior de Sergipe, onde, embora exista uma cultura viva popular viva e atuante, não há nenhum curso de teatro ou atores profissionais. 

Enquanto algumas faculdades paulistanas conseguem estruturar sua logística e aperfeiçoar o trabalho do mesmo grupo de intérpretes, outras instituições, como as de Lagarto, precisam improvisar. Em casos como esse, é preciso encontrar alternativas, como treinar voluntários, estudantes e/ou professores para assumir os papéis de pacientes simulados. 
 

Importância da interdisciplinaridade

“Sabemos que a prova de medicina não é, na sua intenção primeira, um espetáculo para ser apresentado ao público”, reconhece Emerson. Ele esclarece que a teatralidade está na estrutura, na forma em que o teste é produzido. Todos os procedimentos são planejados de acordo com sua eficácia pedagógica e, por isso, há muito cuidado na hora de aliar a arte à ciência.

Ao longo dos anos, as provas práticas envolvendo o uso do Paciente Simulado vêm sendo repensadas e reformuladas com o propósito de aperfeiçoar os testes. Simulações que envolviam pacientes violentos, por exemplo, foram modificadas, para evitar que os candidatos fossem submetidos a uma pressão psicológica além da própria tensão natural da avaliação.

Foto de um atendimento simulado. Uma mulher branca vestida de preto está sentada. Ela se apoia em uma mesa para ler um papel. Um homem branco de cabelos curtos e escuros está sentado na frente dela e de costas para a câmera. Ao lado da mesa, uma mulher branca que usa óculos e tem cabelos escuros observa a cena.
Apenas médicos avaliadores, que acompanham toda a simulação, podem interferir na nota do candidato

Emerson também cita uma novidade na técnica ainda pouco aplicada no Brasil: a participação do ator como avaliador colaborador. Ainda há poucos estudos científicos sobre a prática do feedback de pacientes simulados, que requer um envolvimento maior com os médicos para compreender os objetivos e critérios da avaliação, mas Airton, a partir de sua experiência, acredita que seria muito interessante pois “apesar de não ser um paciente real, o ator está vivendo um momento de paciente.”

Para o artista, a relação entre professores avaliadores e intérpretes foi bastante amigável. Ele conta que frequentemente os profissionais se juntavam para almoçar e conversar. Nesses bate-papos, além de elogios e agradecimentos por parte dos médicos, havia muita troca de experiências.

 

“Nos intervalos a gente entrava em assuntos de formação, tanto da deles quanto da nossa. E aí eles percebiam que o nosso trabalho de ator também exige tanto quanto o deles [de médicos]. Era bacana a troca.”

 
Airton Dupin, ator que participou do Paciente Simulado

 

Airton, que ajudou na discussão de ideias e sempre apoiou o projeto do amigo, acredita que o uso de Paciente Simulado tem uma grande relevância humanitária. Ele tem a percepção que os médicos tendem a estudar as doenças e patologias como se elas fossem isoladas, quando, na realidade, estão “cheias de contaminações humanas, de precisões, de imprecisões, de sentimento, de emoções.”
 

 

 


Imagens: Reprodução/YouTube - Canal Fap Unifesp