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Vanguarda Paulista: música, estética e política em sintonia tensa com seu tempo

Professor Rogério Costa retoma o movimento de postura disruptiva, crítica e sofisticada e comenta as relações com a ECA em sua origem

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São Paulo
década de 1980
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A Vanguarda Paulista foi mais do que um movimento musical, foi também uma postura estética e política diante do mundo. Emergindo entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, em um Brasil que começava a ensaiar seus primeiros passos rumo à redemocratização, consolidou-se como uma resposta complexa a um tempo igualmente complexo. Seus integrantes, em grande parte formados e atuantes em São Paulo, optaram por não seguir os caminhos já trilhados pela indústria fonográfica ou pela MPB hegemônica. Preferiram inventar os seus próprios.

Foi um movimento marcado por uma multiplicidade de vozes e percursos, mas com um ponto comum: o desejo de romper com as convenções, experimentar novas formas e afirmar uma liberdade criativa que, naquele momento histórico, carregava um enorme peso simbólico. Estávamos saindo de uma ditadura, mas ainda convivíamos com seus fantasmas — e a arte tornava-se um dos espaços privilegiados de contestação.

 

A política nas entrelinhas (e às vezes entre as notas)

É verdade que a Vanguarda Paulista não foi um movimento explicitamente panfletário. Mas a política estava lá — nas escolhas estéticas, na recusa ao formato pronto da canção radiofônica, na valorização da autonomia artística. Havia uma postura crítica em relação ao mercado e à lógica do consumo, mas também um posicionamento frente à realidade social brasileira: desigual, autoritária, excludente.

Foto de uma pessoa jovem com cabelo cacheado e volumoso sorrindo diretamente para a câmera enquanto segura um pequeno copo. Veste uma regata branca com a estampa "Clara Crocodilo" em letras vermelhas e o desenho de um olho estilizado no centro. A imagem tem aparência retrô com tonalidade esverdeada.
Arrigo Barnabé, um dos expoentes da Vanguarda Paulista, em 1980. Foto: autoria desconhecida.

Muitos artistas do movimento abordaram, em suas letras, temas urbanos, o cotidiano caótico das grandes cidades e a violência simbólica e material que atravessava a vida das pessoas. Mas o faziam de maneira sofisticada, muitas vezes com ironia, recorrendo a recursos de linguagem que exigiam escuta atenta. O discurso não vinha mastigado — fazia parte de uma construção estética que convidava à reflexão.

Nesse sentido, havia uma clara sintonia entre forma e conteúdo. As músicas não seguiam estruturas tradicionais. Os arranjos desafiavam expectativas. Ritmo, harmonia e melodia muitas vezes pareciam se desencontrar, apenas para se reencontrar de modo inesperado. Isso também era político: tratava-se de questionar não apenas o que se dizia, mas como se dizia.

 

USP, ECA e um certo atrito criativo

Boa parte dessa efervescência passou pela Universidade de São Paulo, especialmente pela Escola de Comunicações e Artes (ECA). Ali, o Departamento de Música (CMU) foi tanto espaço de formação quanto de embate. Alguns artistas da Vanguarda Paulista estudaram ali — Arrigo Barnabé, Helio Ziskind, Mario Aydar, Pedro Mourão, entre outros — e tiveram contato direto com o ambiente acadêmico, ainda que nem sempre de forma pacífica.

Como aluno do Departamento na época, pude vivenciar de perto esse convívio. Havia uma relação ambígua entre os músicos e a instituição. De um lado, uma estrutura acadêmica ainda bastante presa a tradições e convenções musicais, ou então alinhada à vanguarda erudita europeia e seus compositores emblemáticos — Pierre Boulez, Luciano Berio, Karlheinz Stockhausen, György Ligeti entre outros. De outro, jovens inquietos, experimentando novas linguagens e questionando os limites entre o “erudito” e o “popular”. Os atritos eram inevitáveis, mas produtivos. Houve contaminação mútua. A universidade oferecia um espaço de reflexão, enquanto os artistas trouxeram à academia uma dose de ousadia e desconstrução que a sacudia.

 

Estética da colisão

A estética da Vanguarda Paulista pode ser compreendida como uma estética da colisão: entre tradição e ruptura, entre o erudito e o popular, entre a canção e o ruído, entre o drama e o humor. Músicas como Clara Crocodilo, de Arrigo Barnabé, são exemplos emblemáticos desse hibridismo — onde uma espécie de ópera de vanguarda se cruza com o cotidiano urbano, o atonalismo dialoga com a canção e a crítica social emerge como pano de fundo distorcido.

O grupo Rumo, por sua vez, explorava a fala cotidiana como matéria-prima da canção, com arranjos refinados e um certo didatismo provocador. Já Itamar Assumpção, com sua poesia afiada, seu carisma incendiário e sua linguagem singular, desafiava qualquer tentativa de categorização. Sua obra era, ao mesmo tempo, política, visceral e esteticamente inovadora.

Foto em preto e branco de pessoa com cabelo preso em dreadlocks e óculos escuros angulosos tocando uma guitarra. Veste regata clara e está iluminada por um foco de luz, contrastando com o fundo escuro.
Itamar Assumpção. Foto: reprodução/Whosdatewho.

 

Uma cidade como palco (e personagem) e um legado que segue pulsando

São Paulo foi mais do que cenário — foi matéria viva do movimento. A cidade, com sua diversidade cultural, suas contradições e seu caos criativo, alimentava as canções, os conflitos e as performances da Vanguarda. Casas de show como o Lira Paulistana, espaços alternativos, universidades e até estúdios caseiros e salas de ensaio formavam a rede onde tudo acontecia. Havia um sentimento coletivo de urgência criativa, mas também de resistência simbólica.

Apesar de seu alcance relativamente restrito à época — mais cultuada em nichos do que pelas grandes massas —, a Vanguarda Paulista teve um impacto profundo. Influenciou não apenas músicos, mas também críticos, acadêmicos e artistas de diversas áreas. Contribuiu para a abertura da música brasileira, mostrando que era possível fazer arte fora das amarras do mercado e das convenções de gênero.

Hoje, revisitar esse movimento é também revisitar uma fase intensa da história cultural brasileira. Um momento em que música e pensamento andavam juntos, em que estética e política não se separavam, e em que criar era, acima de tudo, um ato de liberdade.

 

Sobre o autor

Foto de um homem branco com um leve sorriso. Ele tem olhos castanhos e cabelos brancos e curtos. Veste camisa de gola branca, blusa escura e usa óculos de armação quadrada azul. Ao fundo há uma estrutura de ferro e tintura azul descascada.
Rogério Luiz Moraes Costa (CMU) - Foto: acervo pessoal.

Rogério Luiz Moraes Costa é compositor, performer, saxofonista e professor livre docente ligado ao Departamento de Música da Universidade de São Paulo. Coordena projetos de pesquisa sobre a improvisação e suas conexões com outras áreas de estudo, tais como composição, educação, tecnologia, filosofia, micropolítica e decolonialidade. Possui vasta produção bibliográfica sobre esses temas publicada em revistas, anais de congresso e livros. O mais importante dos seus projetos atuais é a Orquestra Errante, grupo que desenvolve pesquisas sobre improvisação e práticas criativas coletivas. Vale mencionar que no ano de 2021 a Orquestra Errante participou, numa parceria com Arrigo Barnabé, da criação da peça Taxidermia em dois Movimentos. A estreia da peça com a OSUSP ocorreu no dia 8 de outubro. Rogério também é um dos pesquisadores principais do Nusom (Núcleo de Pesquisas em Sonologia). Em 2016, publicou pela Editora Perspectiva, o livro Música Errante: o Jogo da Improvisação Livre e, em 2024, publicou pela editora L’Harmattan o livro Autour de l' Improvisación: Essais em colaboração com as professoras Inés Pérez-Wilke e Patricia Kuypers.

 

 


Imagem de capa: autoria desconhecida.