Pesquisa revela os impactos dos algoritmos para o jornalismo brasileiro
Dissertação de mestrado mostra que a lógica algorítmica das redes sociais pode ser um perigo para a democracia
Em dezembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento da regulamentação das redes sociais. O plenário decidirá se as chamadas Big Techs, conglomerados que reúnem empresas de tecnologia, incluindo as mídias digitais, deverão se responsabilizar pelos conteúdos publicados por seus usuários. Hoje, o Marco Civil da Internet, de 2014, prevê essa responsabilidade por danos das redes sociais apenas quando elas não cumprem alguma ordem judicial de remoção de conteúdo. Até o momento da publicação desta matéria, apenas os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux apresentaram seus votos, ambos favoráveis à responsabilização.
Essa discussão tomou conta do debate público, especialmente dentro do jornalismo, uma vez que a internet se tornou um dos principais meios para as pessoas se informarem. Segundo o Digital News Report 2024, um relatório anual feito pelo Instituto Reuters que coleta dados no mundo inteiro sobre o consumo de notícias, os brasileiros se informam majoritariamente pela internet, sendo que as redes sociais correspondem a 51% das fontes de notícia. Outro dado alarmante é que menos da metade da população do país, 43%, diz confiar nas notícias.
Em meio a esse cenário ainda sem regulamentação, em que o Brasil está se informando cada vez mais digitalmente e que a confiança nas notícias está caindo, uma pesquisa buscou entender quais são os impactos causados pelos algoritmos das redes sociais. A lógica algorítmica do Facebook e suas implicações para o jornalismo e a esfera pública política é a dissertação de mestrado de Marcelo Salton Schleder, jornalista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da ECA.
A pesquisa, orientada pelo professor Anderson Vinicius Romanini, do Departamento de Comunicações e Artes (CCA), teve como objetivo analisar os impactos do sistema algorítmico, especificamente do Facebook, para o jornalismo e a vida pública. Para isso, Marcelo utilizou referências teóricas da área da Ciência da Comunicação e considerou o histórico do Facebook e do jornalismo brasileiro. Ele também levantou dados, tanto da plataforma quanto de outros veículos de imprensa no Brasil.
Em entrevista, Marcelo explica que escolheu direcionar a pesquisa para o Facebook, pois, além de ter sido uma das primeiras grandes redes sociais, teve grande influência pública na década de 2010. Outra razão é que o Facebook é controlado pela Meta, empresa de Mark Zuckerberg que hoje é dona de algumas das maiores plataformas do mundo: Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads. Isso faz com que o sistema de algoritmos do grupo seja semelhante e tenha inspirado as demais redes.
Como os algoritmos funcionam?
Em 2014, o Facebook atingiu a marca de 1,2 bilhões de usuários em todo o mundo, se tornando a maior rede social do planeta, dez anos após sua criação. Desde então, o algoritmo da plataforma já passou por algumas transformações, acompanhando a evolução da inteligência artificial e do aprendizado de máquina. Entretanto, até hoje não é possível saber ao certo como ele funciona, já que não há real transparência por parte da empresa.
Marcelo revela, em sua dissertação, que todas as plataformas se baseiam em três mecanismos centrais: a dataficação (também chamada de datificação), a comoditização e a seleção. A primeira etapa é a “capacidade de transformar em dados aspectos da vida que jamais haviam sido quantificados”, ou seja, a coleta de informações dos usuários. Já a comoditização é o processo que torna esses dados coletados mercadorias, que são comercializadas, na maioria das vezes, para a criação de anúncios publicitários personalizados. A última etapa desse processo é a seleção, um trabalho realizado pelos algoritmos que corresponde à curadoria do conteúdo a ser apresentado a cada usuário.
A pesquisa explica que, apesar da ideia comum de que a seleção é um processo democrático, pois dependeria exclusivamente das ações dos usuários, como curtidas e compartilhamentos, os mecanismos por trás dessa seleção são, na verdade, um mistério.
“Os algoritmos são apresentados aos usuários como fórmulas matemáticas que visam o conforto e a eficiência. As fórmulas algorítmicas são tratadas como um grande segredo, sem revelar que nelas estão incluídos muitos fatores desconhecidos aos usuários e que privilegiam o interesse exclusivo das plataformas.”
Marcelo Salton Schleder, jornalista e mestre em Ciências da Comunicação
Apesar desse mistério, o trabalho apresenta algumas tentativas que chegaram mais próximas de revelar como os algoritmos realmente funcionam. Uma delas foi proposta pelo jornalista Josh Constine, em 2016. De acordo com a ideia dele, “a visibilidade de uma publicação no feed do Facebook era determinada pelo grau de afinidade entre o usuário e o criador do conteúdo, o nível de engajamento de outros usuários com a publicação, o fator tempo e o histórico do usuário com aquele formato de conteúdo”.
Mesmo se aproximando do modelo real, o jornalista explica a dificuldade em entender o comportamento dos algoritmos ao colocar, no canto da imagem na qual apresenta sua proposição, a seguinte mensagem em letras pequenas: “Essa é uma equação simplificada. O Facebook também considera cerca de 100.000 outras variáveis altamente personalizadas para cada usuário quando determina o que será mostrado”.
Ainda sem entender precisamente o funcionamento dos algoritmos, Marcelo buscou elucidar a lógica algorítmica do Facebook. Para isso, foi analisado o modelo de negócios da plataforma, que depende quase que exclusivamente da venda de anúncios publicitários. A pesquisa revela que, segundo o relatório financeiro anual de 2022 da Meta, a empresa arrecadou US$116,6 bilhões, sendo que US$113,6 bilhões vieram de publicidade. Mas, como isso é possível?
A resposta é a economia da atenção: quanto mais tempo os usuários passam na rede, mais anúncios eles visualizam e assim, a empresa lucra mais. Assim, todos aqueles dados coletados são utilizados para enviar os conteúdos mais atrativos, a fim de prender a atenção do consumidor. Esses dados também são vendidos aos anunciantes, que podem escolher o público-alvo que desejam, aumentando a eficácia de suas propagandas.
Dessa forma, a lógica algorítmica significa a seleção de publicações e anúncios personalizados para reter a visualização do público e gerar mais lucro. Marcelo ainda explica que, na maioria das vezes, o que mais chama a atenção são informações marcantes, que ativam o emocional dos usuários, como manchetes sensacionalistas, independentemente se são verdadeiras ou não.
Quais são os impactos para o jornalismo brasileiro?
Com a popularização das redes sociais e dessa lógica algorítmica criada pelo Facebook, as empresas, que antes anunciavam nos cadernos dos jornais impressos, passaram a fazer suas propagandas nas plataformas digitais, já que, por serem personalizadas, são mais efetivas, algo que nem mesmo os jornais online conseguem fazer. Isso representou uma perda de receita muito grande para a imprensa, que resultou na redução das redações, com muitos jornalistas sendo demitidos, e na falência dos veículos que não conseguem se adaptar a esse modelo digital: a pesquisa aponta que, desde 2017, 685 jornais fecharam as portas no Brasil.
Marcelo afirma que os jornais locais são os que mais sofrem com essa transformação: “Hoje, os quatro grandes [jornais] cresceram muito e os outros estão definhando cada vez mais. Eu acho que a internet, ao invés de democratizar, está levando a uma grande concentração”. Através de uma análise de dados coletados pelo Instituto Verificador de Comunicação (IVC), a pesquisa selecionou os quatro veículos de maior circulação total (impressa e digital) do país: O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Valor Econômico.
Apesar de todos os veículos de imprensa do país terem sofrido uma enorme queda de sua tiragem impressa, os quatro grandes observaram, em média, um crescimento em suas circulações totais desde 2010, enquanto jornais menores e regionais tiveram queda na circulação total no mesmo período. Em 2022, quando somados, os quatro grandes acumulam a maior fatia do mercado, com uma participação de 56,85%. Já os dez principais diários locais somam apenas 20,51%.
Outra consequência dessa algoritmização para o jornalismo apontada pelo estudo está relacionada ao conceito de gatekeeping: “o processo de seleção e transformação de vários pequenos pedaços de informação na quantidade de mensagens que chegam às pessoas diariamente”. Ou seja, é a responsabilidade de escolher qual informação vira notícia ou não, tarefa que era exclusivamente jornalística e representa um grande poder, pois é capaz de definir o debate público, moldar a visão de mundo das pessoas e influenciar até mesmo decisões políticas governamentais. Hoje, algoritmos e jornalistas competem por esse poder de decisão.
Como isso afeta a vida pública?
Quando os jornalistas são substituídos por algoritmos no papel de gatekeepers da informação, as consequências para o debate público e para a democracia podem ser devastadoras, como conclui a pesquisa de Marcelo. Isso porque, ainda que imperfeitos e com seus próprios interesses, os veículos de imprensa tradicionais têm algum compromisso com a veracidade dos fatos e com o interesse público. Sem regulação, não é possível observar esse mesmo compromisso nas redes, o que cria um ambiente favorável à disseminação de notícias falsas e desinformação.
A lógica algorítmica, ao entregar diferentes conteúdos personalizados, também contribui para a polarização política do país, à medida que cada usuário está imerso em uma bolha que contém apenas opiniões similares às suas, sem espaço para posições divergentes e o debate público saudável entre elas. “A opinião assumiu um papel mais importante para as pessoas do que os fatos, que ficam em segundo plano nas redes”, afirma o jornalista.
“Em vez de informar os cidadãos, os algoritmos visam promover o consumo. Os dados coletados alimentam grandes máquinas de publicidade microssegmentada. Se explorados por atores maliciosos, dispostos a influenciar a opinião pública política através de conteúdo falso, os resultados podem ser possivelmente catastróficos para a democracia."
Marcelo Salton Schleder, jornalista e mestre em Ciências da Comunicação
Para provar esse risco, Marcelo traz um exemplo recente: os ataques a Brasília em 8 de janeiro de 2023. Ele argumenta que a lógica algorítmica das redes sociais, sem o rigor do jornalismo, cria câmaras de eco de opiniões únicas e notícias falsas que, além da polarização, podem levar a “percepções distorcidas da realidade”. Os apoiadores do candidato à presidência derrotado nas eleições de 2022, Jair Bolsonaro, acreditaram fielmente em uma fraude eleitoral sem nenhum indício, mas que foi amplamente divulgada nas redes, “chegando ao extremo de atacar prédios e instituições que simbolizam a democracia do país”.
Ao final de sua dissertação, Marcelo acende um alerta. O Facebook e as demais redes sociais são capazes de amplificar comportamentos coletivos da sociedade, sejam eles bons ou ruins, já que, nesses espaços, as pessoas podem tanto se conectar e fazer amigos, como também podem disseminar desinformação e discursos de ódio. Para ele, a compreensão da lógica algorítmica e os eventos políticos da última década, como os recentes ataques à Brasília, mostram que o país precisa, mais do que nunca, de um jornalismo de qualidade: “o preço da inação coloca em risco a própria democracia brasileira”.