Quem decide o que você vai assistir hoje?
Mestrado profissional analisa como a inteligência artificial em plataformas de streaming pode induzir escolhas do espectador
A popularização do streaming trouxe a possibilidade dos espectadores terem acesso a inúmeros conteúdos audiovisuais que podem ser vistos a qualquer momento, mas será que é você mesmo quem escolhe o que assistir? É sobre essa questão que se debruça a dissertação de mestrado profissional Inteligência Artificial em plataformas de streaming, o gerenciamento audiovisual e sua influência em processos decisórios, defendida em 2023 por Jader Jaime Costa do Lago. O trabalho foi orientado pelo professor Francisco Carlos Paletta, do Departamento de Informação e Cultura (CBD) da ECA USP. Nesse estudo, investigou-se como o uso de algoritmos nessas plataformas gera um sistema de recomendação para influenciar os processos de decisão e escolha dos usuários e favorecer os objetivos de negócio de grandes conglomerados.
Formado no antigo curso de Rádio e Televisão da ECA, Jader decidiu retornar ao mundo acadêmico motivado por seu interesse em estudar quais eram as Inteligências Artificiais (IA) por trás da ascensão das plataformas de streaming: “Me chama muito a atenção o surgimento de um novo meio de comunicação feito em pílulas(...). Ele te permite um consumo audiovisual completamente novo e diferente de tudo o que existiu antes.”

Jader optou por fazer um mestrado profissional, a fim de conciliar os estudos com sua ocupação no mercado de trabalho. Essa modalidade de pesquisa visa incrementar profissionais com o estudo de técnicas, processos e temáticas relacionadas ao contexto do trabalho, conta o professor Rogério Mugnaini, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI). Além disso, no mestrado profissional em Gestão da Informação, o objetivo é a qualificação de profissionais para atuação na gestão de políticas públicas de informação, na cultura, ciência e tecnologia e nos serviços de informação multidisciplinares em novos contextos, principalmente em ambientes virtuais. O professor explica: “Sua missão é dinamizar a relação entre a pesquisa científica e a pesquisa aplicada, facilitando a apropriação dos referenciais teóricos da área para desenvolvimento de projetos de intervenção no mundo do trabalho.”
O sistema de recomendação de conteúdos
A introdução da pesquisa conta como as plataformas de streaming se popularizaram pelo seu caráter flexível e de disponibilidade imediata, característica que contrasta com a grade de programação definida da televisão. Para se tornarem mais competitivas e reterem ainda mais os usuários, as plataformas de streaming fazem uso de inteligência artificial e de algoritmos para criar uma experiência audiovisual aparentemente personalizada.
Jader detalha o funcionamento desse processo, que envolve o cruzamento de informações individuais com informações de um banco de dados global para simular o gosto do espectador de forma mais precisa. Dessa forma, surge o sistema de recomendação, através do qual a IA consegue indicar conteúdos que se assemelham ao perfil do usuário e que tenham relação com produtos audiovisuais já consumidos. Alguns dos algoritmos básicos utilizados por essas plataformas e abordados na pesquisa são relacionados com tópicos como: tendências do momento, análise de buscas, estimativa do que o usuário mais gostaria de rever ou continuar assistindo, dentre outros.
Baseado nos trabalhos da pesquisadora da Carnegie Mellon University, Devyn Hynkle, que explica o papel dos algoritmos no streaming, Jader aponta que cada conteúdo das plataformas é classificado por meio de atributos que funcionam como metadados em forma de tags ou texto. Isso facilita o rastreio de itens com os quais o usuário interagiu anteriormente, como por exemplo “Terror besteirol” ou “Comédia Romântica para adolescentes”. Assim, o sistema consegue usar a ferramenta de push, a fim de “empurrar” os conteúdos filtrados conforme o perfil do cliente, por meio de notificações ou da inclusão de sugestões no cardápio de atrações oferecido para os usuários.

Apesar de utilizar muita tecnologia automatizada, Jader afirma que a curadoria humana por trás de todo esse sistema é essencial para direcionar conteúdos e para responder pelos diversos interesses que a companhia possa ter: “É uma mistura dos algoritmos que induzem esse consumo através de conhecimento do próprio usuário e da própria curadoria humana que empurra conteúdo em um nível global.”
Coerção ou livre arbítrio?
Na dissertação é feita uma discussão sobre a diferença entre decisão e escolha e sobre como o sistema de recomendação afeta esses processos decisórios, já que muitos espectadores não percebem que há uma inteligência artificial por trás do que aparece nas telas de seus perfis. Jader esclarece: “O trabalho trata disso: a questão do livre-arbítrio, em que há um questionamento, hoje em dia, se o livre-arbítrio existe ou não, já que várias decisões nossas são tomadas de maneira inconsciente”. Por isso, baseado no trabalho de outros estudiosos, o pesquisador propõe que esse aspecto do uso do streaming possa ser analisado por meio da coleta de informações sobre os sentimentos gerados ao receber as recomendações.
Uma das teorias explorada pela dissertação para explicar a falta de percepção da indução dos algoritmos no Brasil é a de que o país não popularizou o hábito de ler. Dessa maneira, os brasileiros foram inseridos na etapa da digitalização sem terem desenvolvido amplamente uma cultura de leitura. Como resultado desse salto abrupto de analógico para digital, o consumo de internet no país se tornou massivo e desmedido, o que contribuiu para a difusão intensa do streaming, como apontado no trabalho de Jader e no de outros pesquisadores. Outra consequência dessa lacuna educacional é que os brasileiros confiam mais nas informações que recebem por meios digitais do que cidadãos europeus, segundo dados apresentados na pesquisa de Jader, e esse é outro fator que pode explicar o papel indutor dos sistemas de recomendação.
Embora o Brasil seja um país com profundas desigualdades socioeconômicas, é um país que consome muita internet. Então, o Brasil é um mercado prioritário para a maioria das plataformas digitais do mundo. Isso é provado com o Netflix: o Brasil é o segundo maior mercado do mundo e o terceiro em lucro para a empresa.
Jader do Lago, pesquisador
Interesses econômicos por trás do uso de algoritmos
As plataformas objeto do trabalho foram as cinco mais utilizadas em 2022 no Brasil: Netflix, HBO Max, Amazon Prime, Globoplay e Disney Plus, segundo a pesquisa da Hibou. Apesar de concorrentes, o pesquisador revela que todas podem estabelecer parcerias para coleta e compartilhamento de dados. Para explicar e analisar esse tipo de parceria, o autor utiliza o conceito de Colonialismo de Dados, em que dados coletados por meio de ferramentas como algoritmos são utilizados para extração de valor econômico, já que eles permitem prever, induzir e modificar comportamentos de consumo.
Desta maneira, grandes conglomerados podem compartilhar informações, formando bancos de dados globais para direcionar conteúdos e traçar perfis individualizados de seus usuários. Esse compartilhamento de dados entre corporações pode ser percebido com recomendações de filmes por outros meios que não estejam diretamente ligados a uma plataforma de streaming específica. Um exemplo apresentado na dissertação é como a Alexa, assistente virtual da Amazon, sugere filmes que integram não só o catálogo da Amazon Prime, como também de outras empresas da HBO Max, GloboPlay, entre outras.

Apesar desse processo estar todo descrito nos termos de condição de uso de cada plataforma, um ponto de atenção trazido por Jader está na falta de consciência dessa coleta de dados, principalmente por aquelas pessoas que carecem de letramento digital e tendem a consumir conteúdos na internet de forma menos crítica.
Jader, agora no doutorado, continuará suas pesquisas envolvendo plataformas audiovisuais, mas expandindo a investigação para compreender seu papel nas dinâmicas culturais da atualidade: “O objeto agora é o mesmo, porém a proposta do doutorado é diferente: é como as plataformas audiovisuais fazem parte de um sistema maior, como uma ferramenta de dominação cultural da pós-modernidade”.