Revista Aspas dedica dossiê à Prática como Pesquisa nas Artes Cênicas
Em artigo, docente da Unicamp explica como o diálogo entre prática e pesquisa gera novos modos de produção de conhecimento e ressignifica a produção artística
Há 50 anos foi implementado o primeiro mestrado em artes no Brasil. Dez anos depois, foi criada a área de Artes no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Esses dois marcos no campo das artes trouxeram debates importantes sobre a relação entre pesquisa e criação, entre arte e ciência. O dossiê Prática como pesquisa nas Artes Cênicas, publicado na última edição da Revistas Aspas, busca compreender o estado atual desse debate.
A edição reúne 10 artigos de pesquisadores que analisam as práticas artísticas nas pesquisas acadêmicas recentes. O editorial chama atenção para o fato de que a pesquisa em artes “questiona a forma como pensamos e praticamos a pesquisa, mas também como as organizamos/compartilhamos com o mundo”.
No artigo Fazer-com a Prática como Pesquisa: tecendo experiências coletivas de produção de saberes nas artes da cena, a docente e pesquisadora Silvia Geraldi, da Universidade de Campinas (Unicamp), apresenta o conceito da Prática como Pesquisa (Practice as Research - PaR) para questionar a visão recorrente na academia de que a prática deve ser subordinada à pesquisa.
A partir dos seus dez anos de experiência com o grupo Prática como Pesquisa: processos de produção da cena contemporânea e das das ideias da filósofa Donna Haraway, a pesquisadora propõe um espaço de hesitação, no qual praticar uma pesquisa é “habitar o problema” e não, necessariamente, formular respostas.
Gestos que resistem
“O gesto canhoto – irreverente, crítico, subversivo – exprime o desafio com que se confrontam artistas que optaram por hibridar prática artística e investigação acadêmica”.
Silvia Geraldi, pesquisadora e docente da Unicamp
Segundo o artigo, a Pesquisa Artística ou Pesquisa em Artes muda constantemente. São termos que funcionam como “um conceito guarda-chuva bastante elástico por acolherem diversas abordagens de conhecimento que adotam linguagens artísticas, práticas criativas e manifestações estéticas nos seus processos investigativos, nas reflexões e nas formas de escrita e documentação da pesquisa”.
A pesquisadora observa o crescimento da discussão sobre a pesquisa no campo das artes a partir do fortalecimento do ensino superior em artes no país. Ela cita a abundância de publicações, eventos e grupos de pesquisa que se dedicam às articulações entre a pesquisa acadêmica e a prática artística, nos quais se percebe a diversidade de metodologias que surgem para dar conta desse campo do conhecimento em construção.
Silvia traz a ideia de que artistas se tornaram pesquisadores para conhecer, compreender e produzir suas próprias artes, estabelecendo uma relação de dualidade entre produção artística e pesquisa acadêmica.
Sob essa perspectiva, a autora transpõe a analogia do gesto canhoto – inspirada no violonista Luís Américo Jacomino, que era canhoto e tocava sem inverter as cordas e o instrumento – para abordar o antigo debate entre arte e ciência.
Para a autora, o gesto canhoto, no contexto da pesquisa em artes, “é um gesto que resiste à maneira como uma situação é apresentada, que mobiliza o pensamento e a ação e confere a um problema o poder de obrigar a pensar, compondo mundos antes inimagináveis”.

Ações conjuntas
“Praticando o fazer e o pensar por processos de interação, tecendo e passando adiante conexões que importam, às vezes falhando e soltando os fios, às vezes se deparando com algo inesperado, com potencial para produzir outros possíveis. Afinal, política e mundos se tecem juntos”.
Silvia Geraldi, pesquisadora e docente da Unicamp
A PaR chamou a atenção da pesquisadora. De acordo com ela: “não somente por sua afinidade com modelos que eu livremente experimentava em minhas práticas de dança e pesquisa no ensino superior, mas sobretudo a proximidade com um tipo de investigação que já discutíamos e realizávamos na academia brasileira, certamente não com o mesmo nome, nem com as mesmas diretrizes e protocolos, mas a partir de questionamentos convergentes”.
Baseado em práticas performativas e nos pressupostos da Prática como Pesquisa, foi criado o grupo Prática como pesquisa: processos de produção da cena contemporânea, com o propósito de acolher “as indagações de diversos artistas, docentes e estudantes pesquisadores das artes presenciais como dança, teatro, circo, performance”.
Ao recorrer à metáfora das figuras de barbante de Haraway, conhecidas no Brasil como cama de gato, Silvia compara essa dinâmica ao trabalho desenvolvido pelo grupo de pesquisa ao longo de dez anos. A brincadeira envolve criar formas com um barbante e passá-las adiante sem desfazê-las, permitindo novas configurações. A pesquisadora destaca duas características importantes e interligadas na prática como pesquisa: a transformação da matéria e a ideia de "pensar-com", uma ação coletiva, feita em conjunto.
Essa construção coletiva do conhecimento não ocorre apenas no plano das ideias, mas também envolve a materialidade dos corpos e dos gestos. Ao abordar a prática como modelo de pesquisa, torna-se indispensável questionar qual o papel da presença do corpo na prática do pensamento. O entendimento do papel do corpo e do trabalho corporal são partes decisivas do trabalho investigativo do grupo. Para pensar, “você deve sentir o seu peso e perceber sua posição física em relação à força da gravidade”, afirma a pesquisadora.
No contexto da PaR, essa percepção propõe as práticas não como são, mas como podem vir a ser. Isso implica em compreender o corpo e o pensamento como elementos conjuntos, reconhecendo que pensamento e movimento estão interligados.
Habitando problemas coletivamente
Historicamente, a prática tem sido subordinada à pesquisa, assim como outras dicotomias como mente/corpo, teoria/prática, saber/fazer e razão/emoção. Para a autora, quando colocadas lado a lado, em paridade de importância e poder, essas categorias questionam e desafiam as hierarquias enraizadas na universidade ocidental.
A prática é, portanto, um elemento que desestabiliza e identifica novos problemas em relação ao que geralmente é considerado a cena artística contemporânea, seus processos, produtos e contextos, segundo a pesquisadora. “Praticar uma pesquisa é produzir e/ou habitar problemas, não formular respostas (embora isso possa ocasionalmente ocorrer)”.
Nas pesquisas do grupo, a exigência principal é que toda e qualquer proposta, ao ser abordada, produza um problema, isto é, “seja marcada pela instabilidade, incerteza, incompletude e pelas ausências que convoca mais do que pelas presenças que expressa”.
É a partir desse posicionamento que o seu grupo de pesquisa explora em conjunto as noções de prática e pesquisa. Assim, a investigação deixa de ser unicamente individual e expande-se para processos interconectados, nos quais o centro é a coletividade na produção de conhecimento.
“O grupo tem compreendido a prática da pesquisa como parte de um processo de aprendizagem, uma comunidade de aprendizagem, onde, independente da diferença de experiências e níveis de instrução entre as pessoas, o que se partilha é tanto um desejo de saber quanto a experiência de não saber frente a um âmbito comum de conhecimento.”
Silvia Geraldi, pesquisadora e docente da Unicamp

O grupo
Criado em 2014, o grupo Prática como Pesquisa: processos de produção da cena contemporânea é vinculado ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Unicamp, formado por mestrandos, doutorandos e colaboradores de várias regiões do Brasil, sob a liderança das pesquisadoras Marisa Lambert e Silvia Geraldi.
Revista Aspas
A Revista Aspas é publicada semestralmente pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) e busca divulgar pesquisas em artes cênicas, com foco especial nas metodologias desenvolvidas na área, abrindo espaço para novos autores e para formas que escapem do formato tradicional da academia.
Nesta edição, também foi publicado o artigo: A não-binariedade como princípio do programa performativo: a percepção da potência cênica do mundo pela transição de gênero, de Oliver Olívia Lagua de Oliveira Bellas Fernandes, resultado de sua dissertação de mestrado em Artes Cênicas pela ECA.