Revista Rumores: protesto como experiência estética e comunicacional

Último número da revista traz artigo que analisa manifestação pelo aborto legal no tapete vermelho do Festival de Cannes

Vida acadêmica

Protestos que acontecem em espaços públicos são frequentemente objeto de estudo em diversas áreas das Ciências Humanas, que se dedicam a analisar principalmente a dimensão social e/ou política destas manifestações. Mas um ato de protesto também pode ser tomado como uma experiência estética e comunicacional, ou seja, uma experiência que afeta a sensibilidade das pessoas e transmite informações e discursos sobre determinado tema.  

Essa é a proposta de Aline Vaz, da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), no artigo Das ruas ao tapete vermelho: o pañuelazo de Que sea ley como apropriação do espaço estésico, publicado na última edição da Revista Rumores.  A pesquisadora analisa o pañuelazo - em referência à palavra pañuelo, lenço em espanhol - realizado no tapete vermelho do Festival de Cannes durante a estreia do documentário Que Sea Ley (2019). O filme acompanha a onda de protestos a favor da legalização do aborto que tomou conta das ruas argentinas quando a Câmara dos Deputados e o Senado do país votaram o tema, em 2018. Na época, o lenço verde usado pelas manifestantes tornou-se símbolo da luta em favor da interrupção voluntária da gravidez. 

Fotografia colorida mostra um grupo de mulheres de diversas idades, em sua maioria brancas, sorrindo enquanto seguram lenços verdes. Elas estão de pé em uma escadaria coberta por um carpete vermelho. Na porção esquerda, destaca-se uma mulher de cabelos escuros e vestido de gala com mensagens favoráveis ao aborto legal bordadas na barra. Ao fundo, alguns homens também seguram lenços verdes.
Equipe do documentário Que Sea Ley (2019), de Juan Diego Solanas e ativistas durante pañuelazo no tapete vermelho do Festival de Cannes. Foto: Pascal Le Segretain/ Getty Images. 

Segundo a autora, o ato simbólico  e sua repercussão na imprensa internacional funcionam como enunciados próprios, para além do filme que lhes deu origem. “A partir da divulgação do filme, novas expressividades estéticas serão manifestas, não somente pela equipe artística que age e reage corporalmente, mas pela mídia que, ao captar e divulgar o material, constrói efeitos de sentido.” Aline explica que, da mesma forma que um texto ou um filme, comportamentos e práticas sociais também são arranjos de linguagem que possuem sentido próprio. A diferença, segundo ela, é que enquanto a narrativa fílmica ou escrita constitui uma mensagem fechada, os atos sociais são enunciados abertos, dinâmicos, pois desenvolvem-se em interação com o contexto em que ocorrem e as percepções que geram tanto em seus participantes quanto em seus espectadores. 

Para refletir sobre o contexto do protesto em Cannes, a pesquisadora se vale do conceito de espaço estésico. Com origem no grego aisthesis, o termo estesia se refere à capacidade de sentir, de perceber. No artigo, o espaço estésico aparece como uma dimensão da vida em sociedade marcada pelo dinamismo e pela tensão entre movimentos que com frequência são contrários - em oposição à paisagem anestésica, desprovida de movimento e incapaz de afetar sensibilidades. “Logo, no tapete vermelho, apesar do veto no Senado argentino, que, em 2018, proibiu a interrupção voluntária da gravidez, o pañuelazo verde acabou por provocar interações sensíveis, construindo um espaço estésico e fortalecendo narrativas pela descriminalização do aborto.” Ao ocupar o tapete vermelho do festival, a manifestação ressignificou a “paisagem potencialmente anestésica do lugar de passagem”, afirma. 

Foto colorida mostra Penélope Cruz, uma mulher de pele bronzeada e cabelos castanhos. Ela olha para a câmera enquanto segura um lenço verde com os seguintes dizeres, em espanhol: Campanha nacional pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito. Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer.
A atriz espanhola Penélope Cruz exibe o lenço verde durante sua passagem pelo tapete vermelho de Cannes. Foto: Divulgação. 

Com a participação de diversas atrizes, atores e cineastas estrangeiros, além de ativistas argentinas e da equipe de Que Sea Ley, o pañuelazo foi  noticiado por diversos veículos em diferentes continentes, como os jornais El País, no Brasil, BBC News Europe e Clarín, na Argentina, cujas matérias são analisadas no artigo. Levado a um evento internacional, o protesto oriundo das ruas argentinas atingiu novos territórios, e sua presença na mídia possibilitou “trocas simbólicas entre os artistas, militantes e a sociedade; ultrapassando o público de cinema”. 

Uma das consequências do primeiro ato em Cannes foi a realização de mais pañuelazos em outras sessões do documentário, em um “ciclo de exibição/ação/midiatização numa narrativa em rede”. Citando a pesquisadora argentina Verônica Gago, Aline diz que essa reverberação “possibilita ‘a capacidade de abrir um sentido compartilhado a partir da afetação’ como força para a ‘comoção, e não simplesmente com a recepção de um efeito’”. Para ela, o caso analisado  no artigo evidencia a importância das redes discursivas que se articulam em torno de lutas e movimentos sociais por meio de enunciados, atos simbólicos e discursos mediatizados, amplificando seu alcance e suas possibilidades de apreensão por diferentes setores da sociedade.

 

Revista Rumores

Periódico científico voltado aos estudos de comunicação, linguagem e mídias, Rumores enfoca “objetos sensíveis, recortes representativos e visadas desafiadoras” em sua edição de número 30, com o dossiê Resistências e Re(existências). A revista traz diversos artigos que investigam o ficcional e o documental, diferentes tipos de mídia e como as formas da narrativa contribuem para os debates sobre raça e gênero.

A Revista Rumores  – Revista Online de Comunicação, Linguagem e Mídias – é publicada semestralmente pelo Grupo de Estudos de Linguagem e Práticas Midiáticas (MidiAto), da ECA.

Acesse na íntegra essa e outras edições da Revista Rumores no Portal de Revistas da USP.