Tese sobre a branquitude brasileira e africana recebe menção honrosa em prêmio da Capes

Professores entrevistados para o estudo criticam currículo escolar eurocentrado e falta de letramento racial nas escolas

Vida acadêmica

 

“Conexão atlândica”

Paola aponta que seu estudo é resultado de uma conexão caracterizada por ela como “atlândica”. A expressão está relacionada ao fato da pesquisadora ter estabelecido diálogos e cooperações com pessoas não só do lado do Oceano Atlântico, mas também do Oceano Índico.

A tese Conexão atlândica: branquitude, decolonialitude e educomunicação em discursos de docentes de Joanesburgo, de Maputo e de São Paulo recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2023, premiação voltada para as melhores pesquisas de doutorado defendidas em programas de pós-graduação no Brasil em 2022. 

A pesquisa tem como autora Paola Diniz Prandini, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA, com orientação de Maria Cristina Palma Mungioli, docente do Departamento de Comunicações e Artes (CCA).

Receber menção honrosa no Prêmio Capes foi uma grande alegria, uma honra, já que foram quatro anos de muito trabalho. Esse é um prêmio que deve ser partilhado com toda a sociedade, não só brasileira, mas também moçambicana e sul-africana, porque só foi possível pelo fato de que uma série de pessoas se abriram a refletir sobre esses temas [branquitude e colonialidade] conjuntamente comigo”, diz Paola.

 

O caminho até a tese: ativismo e antirracismo

A pesquisadora explica que sua tese tem como principal objetivo identificar de que maneira a branquitude e as colonialidades estavam e estão presentes nas realidades da educação pública protagonizada por educadores e educadoras das cidades de Maputo, Joanesburgo e São Paulo. 

 Fotografia em preto e branco do rosto de uma mulher que sorri para a câmera. A mulher tem pele branca, olhos escuros e cabelos curtos, escuros e lisos.
Paola é consultora da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo desde 2009. Atualmente, é consultora em Comunicação, Educação e Gênero em Moçambique. Além de pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) e do Grupo de Pesquisa Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação (GELiDis), é autora dos livros Cruz e Souza (2011) e A cor na voz: identidade étnico-racial, educomunicação e histórias de vida (2018).

Ativista e antirracista há quase 20 anos, Paola conta que toda a sua trajetória pessoal, profissional e acadêmica influenciou  sua escolha em trabalhar com temas como a branquitude e colonialidades dentro da educomunicação

Com relação às cidades que embasam sua pesquisa, ela diz que São Paulo, sua cidade natal, é um objeto natural de interesse. Joanesburgo, maior cidade da África do Sul, e Maputo, capital de Moçambique, entraram no estudo após visitas em que Paola notou semelhanças  entre a realidade dessas localidades africanas e a da cidade brasileira, principalmente em relação à educação, que, segundo ela, ainda se dá de forma eurocentrada

Paola também trabalha com a formação de docentes há 15 anos. A partir de sua experiência como educomunicadora, pôde observar no cotidiano das aulas o quanto a branquitude está presente nos discursos de educadoras e educadores do Brasil e de outros países.

 

A branquitude brasileira, moçambicana e sul-africana

A educomunicadora lembra que a formação do Brasil se relaciona a uma diáspora africana, ou seja, é fruto do deslocamento, nesse caso forçado, de africanos para o território brasileiro. De acordo com ela, os 350 anos de escravidão legaram ao país as amarguras desse processo, mas também a riqueza cultural que o constitui. 

Em seu trabalho, a autora retoma e problematiza o mito da democracia racial, conceito baseado na ideia de que a miscigenação teria resultado na construção de uma relação harmoniosa entre brancos e negros e, portanto, na consequente inexistência de racismo no país. A partir dessa mentalidade, a branquitude e todos os aparatos ligados a ela se tornam ocultos na estrutura social brasileira. 

 

“Nós temos ainda um mito da democracia racial bastante evidente. [É] como se o nosso país não fosse alvo de uma branquitude enquanto hegemonia que constitui o que tem de mais genuíno no Brasil, o que não é verdade porque, de fato, a branquitude transversaliza a realidade brasileira todos os dias, a todo tempo e em qualquer espaço.” 

Paola Prandini, Doutora e Mestra em Ciências da Comunicação, com especialização em Gestão da Comunicação pela ECA.

 

no contexto sul-africano, as implicações da branquitude são mais explícitas. Segundo a pesquisadora, essa situação pode ser explicada pelo apartheid, regime de segregação racial implantado na África do Sul em 1948. Com o fim do regime nos anos 90, a branquitude, antes escancarada, passa a ser multifacetada: se estabelece em diversas formas e graus na contemporaneidade.

Foto da parte de trás da Casa de Mandela, ponto turístico de Joanesburgo. Casa de um andar revestida de tijolinhos vermelhos e com uma chaminé. Do lado esquerdo da estrutura há uma janela vermelha e estreita com três divisões horizontais e um pôster com a fotografia de uma pessoa de chapéu. Do lado direito, duas das mesmas janelas. Ao centro, há um lance de quatro degraus para acessar uma porta vermelha, que está aberta. À frente da casa do lado direito da imagem, há uma estrutura/estátua de Nelson Mandela e ao fundo, à esquerda, aparece sobre a casa a copa de uma árvore.
Casa de Nelson Mandela, famoso ponto turístico de Joanesburgo, cidade da África do Sul. Imagem: reprodução/Flickr

“Parte da população branca sul-africana, por exemplo, utiliza mecanismos que buscam garantir um certo protecionismo de seus valores e de seus interesses, bem como a manutenção de seus privilégios historicamente adquiridos por meio dos processos de colonização e de apartheid”, pontua.

Quanto à Moçambique, Paola explica que apesar do país não ter passado pelo apartheid, ações com o mesmo objetivo segregacional foram implementadas. Com isso, ecos do período colonial ainda estão presentes no cotidiano do país, no modo de ser e mentalidade de quem vive no local.

“A branquitude impõe seus códigos a partir da manutenção das colonialidades, que podem ser percebidas no dia a dia de quem mora em Maputo até hoje. Um exemplo que posso citar é o fato de que, sendo uma mulher branca, quando caminho pelas ruas da cidade, raras são às vezes em que as pessoas negras não param para me dar passagem nas calçadas, como se eu tivesse um certo direito a ter prioridade em minha caminhada”, relata Paola.

Foto do Museu de História Natural, ponto turístico de Maputo. No centro da imagem há um edifício com estrutura gótica, de cor bege com torres e janelas ornamentadas. Algumas árvores estão à frente e ao lado do prédio. No primeiro plano, ao centro, há a estátua de um pássaro com as asas abertas sobre uma pedra. No canto direito, duas mulheres caminham.
Museu de História Natural, ponto turístico de Maputo, capital de Moçambique. Imagem: Jeremy Weate/Wikimedia Commons

 

Metodologia de pesquisa

Para desenvolver a tese, Paola definiu os professores participantes, a partir de um questionário online respondido por docentes interessados em participar da pesquisa. Ao todo, 13 docentes foram selecionados: quatro da África do Sul, cinco do Brasil e quatro de Moçambique. Ela pontua que se preocupou que essa amostra de profissionais tivesse uma diversidade étnico-racial e de gênero, ainda que o grupo fosse composto em sua maioria por mulheres negras

A pesquisadora fez uma seleção de seis filmes que foram apresentados aos participantes antes de conversarem. A seguir, realizou entrevistas, indicadas por ela como diálogos presenciais e individuais, onde falaram sobre os currículos empregados nas escolas de Maputo, Joanesburgo e São Paulo

Depois dos encontros, Paola pediu que os participantes criassem uma peça educomunicativa (texto, desenho, música etc), sobre as discussões acerca da presença da branquitude e das colonialidades nos currículos educacionais, e também sobre como a educomunicação pode lutar contra essas ideologias. 

Passadas essas etapas, a educomunicadora enviou outro questionário online para que os docentes fizessem uma autoavaliação do processo de que participaram. Depois da devolutiva dos documentos, Paola iniciou a análise dos dados coletados em todas as fases da pesquisa.

 

A visão dos docentes

Além de apresentar um mapeamento em que elenca 31 categorias representativas das colonialidades presentes na maneira com que brasileiros, moçambicanos e sul-africanos enxergam o mundo, Paola analisou os temas e discursos resultantes dos dados coletados e indicou as conexões observadas nas narrativas dos docentes

Na tese, ela aponta que a maioria dos educadores de São Paulo indicaram uma forte existência de concepções coloniais no cotidiano brasileiro. Também reconheceram a reprodução de um currículo escolar eurocentrado e a verbalização de ideias racistas por docentes. Além disso, os profissionais paulistas relataram enxergar a relevância da educação decolonial e citaram a importância do letramento racial. 

Na África do Sul, a maioria dos participantes também indicou a presença de concepções coloniais na cultura africana. Alguns dos docentes afirmaram que os currículos sul-africanos ainda são compostos por normas de uma educação eurocentrada, em que os valores coloniais seguem firmes no pensar e agir de quem compõe as escolas. 

No cenário de Moçambique, Paola indica que as respostas dos educadores variaram muito em relação à branquitude. Apesar disso, em maior ou menor grau há por parte deles a percepção de que as concepções coloniais fazem parte da cultura do país, o que reflete na escola.  Segundo a pesquisadora, essa variação pode ser um indicativo da quase inexistência do debate sobre a presença e os impactos da branquitude. 

 

Educomunicação e cinema

Cena do filme brasileiro M-8. Duas pessoas interagem separadas por uma divisória de vidro. De um lado, o esquerdo da imagem, um rapaz negro de cabelo crespo, camisa azul e mochila bege tem as duas mãos em cima de um documento que está sobre a bancada com divisória. Do outro lado, uma mulher negra com cabelos longos, escuros, cacheados e presos olha para o rapaz e fala algo enquanto aponta o dedo indicador na direção dele. Sua outra mão segura uma folha de papel. Parte de uma prateleira com caixas de arquivos está posicionada ao fundo do lado da mulher.
Além de M8 - Quando a Morte Socorre a Vida (2019), de Jeferson De, filmes como Skin, de Anthony Fabian (2008), e Avódezanove e o Segredo do Soviético (2019), de João Ribeiro, também foram utilizados como parte da metodologia da pesquisa da tese. Imagem: reprodução/IMDb

Depois de discorrer sobre a branquitude em Maputo, Joanesburgo e São Paulo, Paola direciona sua pesquisa para a práxis educomunicativa, definida por ela como a relação entre teoria e prática de processos educomunicativos. A pesquisadora busca entender como, enquanto práxis decolonial e decolonizadora, a educomunicação pode “colaborar para aplicação de percursos didáticos-pedagógicos em prol da equidade étnico-racial” nas cidades de estudo. 

Segundo ela, esses percursos podem ser aplicados, por exemplo, pela mediação cinematográfica. Paola já ministrou cursos para educadores e educadoras focados nos cinemas africanos e afro-brasileiro e considera que a utilização de filmes aliada à educomunicação é uma estratégia pedagogicamente positiva.

Essa estratégia também foi usada por Paola como parte da metodologia de pesquisa de sua tese. A profissional escolheu dois filmes diferentes que se passam em Maputo, Joanesburgo e São Paulo para que os educadores de cada uma das cidades assistissem. 

O uso das obras tinha como objetivo ser uma porta de entrada para os diálogos que seriam estabelecidos sobre a branquitude, colonialidades e decolonialidades. “Essa é a potência que o cinema traz: conduzir e transversalizar diálogos interessantes e ricos, a partir das narrativas cinematográficas”, diz. 

 

Decolonialitude e educomunidade

Ao final da tese, Paola apresenta uma discussão acerca dos conceitos decolonialitude e educomunidades. Conforme sua definição, o primeiro está ligado ao fato de que não há como decolonizar processos pedagógicos e mentalidades sem uma atitude decolonial. Já o segundo indica a noção de que para haver uma práxis educomunicativa decolonial e decolonizadora, é importante que uma educomunidade — comunidade que siga os valores das comunidades africanas e da diáspora africana (estar em coletivo, em diálogo, em trocas não hierárquicas) — seja estabelecida

Como apontado pela pesquisadora na tese, o termo decolonialitude já apareceu como parte do título da introdução do livro Return to the Kingdom of Childhood: Re-envisioning the Legacy and Philosophical Relevance of Negritude (2014), de Cheikh Thiam. Em seu trabalho, ela propõe uma reflexão acerca do termo, enquanto o relaciona ao conceito de educomunidade

A educomunicadora chama a atenção para a necessidade urgente de que as comunidades escolares se tornem educomunidades que tenham como objetivo “co-construir espaços de acolhimento em que o agir é coletivo, descentralizado, não-hierárquico, dialógico e afetuoso”. 

Paola aponta que os dois conceitos ainda são pouco trabalhados no meio acadêmico e que pretende dar continuidade a sua pesquisa a partir deles. 

 

As mudanças advêm de atitudes que ganham força na pluralidade. Almejo que esta pesquisa possa colaborar para a concretização de educomunidades que sejam transversalizadas pelas decolonialitudes, a fim de estabelecer futuros sonhados, por meio de agires que se constituem no presente em prol de diferentes formas de ensinar e de aprender e em que as colonialidades e a branquitude se tornem cada vez menos visibilizadas e garantidas por esse sistema mundo - colonial, desigual, patriarcal, racista, LGBTQIA+fóbico, etc.

Paola Prandini, Doutora e Mestra em Ciências da Comunicação, com especialização em Gestão da Comunicação pela ECA.

 

 


Imagem de capa: reprodução da obra The World We Live In, do moçambicano Marcelino Manhula.