Uso de IA na geração de imagens pode ser perigoso, mas incentiva criticidade

Artigo sobre o tema faz parte da nova edição da revista RuMoRes; publicação adota nova linha editorial e passa a contemplar estudos da crítica de mídia

Vida acadêmica

Continuos avanços tecnológicos permitem a geração de imagens de maneira rápida pelo uso da inteligência artificial. É possível manipular uma obra de arte, criar vídeos e imagens realistas, de pessoas reais ou não, e até mesmo substituir rostos pela sincronização de expressões faciais, como acontece nos deep fakes. Em casos como esses, o que é apresentado em uma imagem torna-se questionável

Imagem gerada artificialmente do Papa Francisco. Um homem idoso de pele branca e cabelos curtos e grisalhos caminha e olha para o lado. Além de um solidéu branco na cabeça, ele veste um casaco puffer branco e longo, usa óculos, um colar com uma crucifixo e segura um objeto na mão direita. No fundo escuro, parte de uma estrutura e pessoas aparecem desfocadas.
Imagem do Papa Francisco feita por inteligência artificial. Imagem: reprodução/X
 

É desse assunto que Felipe Muanis, doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), trata em seu artigo Imagens, inteligência artificial e a incontornabilidade da metacrítica. O pesquisador aponta que o uso da inteligência artificial contemporânea, no contexto da imagem digital, rompe com o referente real de uma imagem técnica (algo preexistente na realidade ou na mente de um indivíduo) e traz à tona uma dúvida que hoje se torna indissociável das representações e de quem as observa.

“Essa ruptura cria um receio e uma desconfiança do real no espectador de toda e qualquer imagem, seja analógica ou digital, o que cria uma pergunta implícita para esse sujeito: será isto real?”, aponta Felipe.

 

Referentes na imagem analógica, digital e sintética

Segundo o pesquisador, todas as imagens figurativas existem a partir de um referente, ou seja, elas se baseiam em algo que existe ou existiu. Em seu artigo, Felipe explica como o referente se manifesta na imagem técnica analógica, na imagem artesanal e digital e na imagem sintética. 

  • Na imagem técnica analógica, como em fotografias ou em filmes, algo físico precisa estar materialmente diante da câmera para que seja impresso;
  • Na imagem artesanal e digital, como pinturas e ilustrações, o referente não precisa estar presente. Ainda assim, nesses casos, é necessário um referente de base. Essas imagens podem ser feitas a partir de uma figura mental, por exemplo;
  • Na imagem sintética, existem três possibilidades: pode ser inteiramente baseada em um referente físico, como em uma foto, criada a partir de uma imagem mental, como em um videogame, ou juntar os dois cenários anteriores, como nos filmes de Jurassic Park em que há a representação gráfica de dinossauros que interagem com o ambiente real.

A partir dessas caracterizações, no contexto da inteligência artificial, há o que Felipe explica no artigo como quebra do referencial do objeto físico representado em uma imagem técnica. Ou seja, haver um objeto em frente a uma câmera, como em uma fotografia, não é mais uma condição determinante para a existência de uma imagem.

 

Cena do filme Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros. Um dinossauro, triceratops, está deitado, possivelmente morto. Uma mulher e um homem estão abaixados na frente do animal e cada um tem uma de suas mãos encostada nele. Atrás do dinossauro, um menino em pé, com as mãos nos joelhos, olha para o animal. A mulher sorri, tem pele branca, cabelos loiros e veste uma camisa vermelha com as mangas dobradas. O homem tem pele branca, cabelo escuro, veste camisa azul, calça bege e usa chapéu bege. O menino tem pele branca, cabelos claros e usa roupa azul. Árvores e plantas formam o plano de fundo.
Cena do filme Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros (1993), o primeiro da franquia. Imagem: reprodução/IMDb 

 

Novas possibilidades

De acordo com Felipe, imagens analógicas sempre foram suscetíveis à manipulação. No artigo, ele cita como exemplo a foto capturada por Leo Ya Leonidov em 7 de novembro de 1919, na Praça Vermelha, no contexto da Revolução Russa, da qual  Leon Trotsky e Lev Kamenev foram, intencionalmente, apagados. 

Ele indica também o filme Un Homme de Têtes (1898), de George Méliès, em que há a multiplicação da cabeça de um ilusionista que brinca com essa parte de seu corpo através da múltipla exposição (técnica fotográfica em que há a sobreposição de uma ou mais imagens).

 

 

Os dois casos indicam que a manipulação de imagens não é algo exclusivamente contemporâneo e pode ser muito notada em fotografias ao longo da história. Na contemporaneidade, no entanto, esse processo é mais intenso, principalmente no cenário digital

 

“A tecnologia digital facilitou e, com o tempo, popularizou ainda mais essas possibilidades, que não se limitam à inserção ou supressão de imagens, mas se estendem à criação de novas possibilidades do real a partir de um hipotético estava ali [referente], que não era exatamente como se apresentava inicialmente”.

Felipe Muanis, pesquisador da UFMG.

 

A popularização de novas tecnologias da imagem digital leva também ao aumento de ferramentas de manipulação de imagens. Hoje, conhecimentos técnicos aprofundados em softwares de edição não são mais necessários para conseguir modificar uma imagem. Diversos aplicativos de fácil operação estão disponíveis até mesmo em smartphones

“Há os aplicativos que escrevem textos (Chat GPT), produzem imagens estáticas (Midjourney, Canva, Dall-E) ou em movimento (Runway.ml, Gen-2), e mesmo aqueles que recriam artificialmente as vozes de pessoas existentes”, pontua Felipe. 

 

Novo momento das imagens: desconfiança

Para o pesquisador, as novas possibilidades digitais de manipulação da imagem (manuseio e adulteração), em muito potencializadas pela inteligência artificial,  inauguram um momento determinante para a história das imagens, um novo período de desconfiança.

Com a mudança das imagens na contemporaneidade, há também a mudança de quem as observa. Ao passo que surgem novas possibilidades de representação, novas relações de leitura se manifestam, o que muda o observador.  Esse indivíduo, conforme Felipe defende no artigo, passa de alguém que antes apenas priorizava o conteúdo, para alguém que também reflete sobre a imagem em si e sua constituição

 

“As imagens digitais, em diversas mídias, como o cinema, a televisão, as fotografias ou vídeos de internet, trabalhados em manipulações de filtros, apagamentos, distorções, complementos e mesmo imagens integrais – criadas, por exemplo, pela inteligência artificial –, favorecem o crescimento e o desenvolvimento de um olhar crítico sobre elas”. 

Felipe Muanis, pesquisador (UFMG)

 

Cada vez mais as pessoas ganham consciência de que as imagens presentes na mídia podem não ser parte fidedigna da realidade, passam a desconfiar delas, e no cenário da mídia no geral, também dos textos e sons. Para Felipe, essa característica tende a elevar o usuário das mídias para um novo patamar.

“Esse modelo de leitor analisa o que na imagem pode ou não ser real, exercita seu olhar e parte de um princípio de desconfiança, que é uma variável que deveria ser levada em conta toda vez que se olha para toda e qualquer representação. A crítica nasceria, assim, justamente a partir de um poder de análise e de dúvida muito mais dinâmico”, explica.

O pesquisador chama atenção, no entanto, para a questão de que a crescente lucidez do observador em relação às imagens e às mídias, não deve ser confundida com uma “perspectiva necessariamente otimista de que a tecnologia resolverá os problemas da imagem, muito menos dizer que todos passarão a ser bons leitores de mídia". A mudança do leitor, apesar de irreversível, é lenta e gradual, como aponta o autor e ainda assim passa pela alfabetização midiática.

 

Regulação, decodificação ou uma nova ordem social

Felipe também afirma que, apesar da possibilidade do aumento da capacidade crítica de quem usa as mídias, e principalmente do observador de imagens, não se deve esquecer o “momento perigoso em que a sociedade se encontra”, pelo uso “cada vez mais descontrolado e sem reflexão da inteligência artificial”. 

 

“A grande questão é o quanto, cada vez mais, constituímos em imagens um mundo virtual, que só existe na imaginação ou em uma realidade imagética complementar à nossa, outro espaço de mimesis, e que efeitos isso pode ter na maneira como o homem enxerga a si e à própria sociedade na qual vive, direcionando suas decisões políticas e de cidadania”.

Felipe Muanis, pesquisador (UFMG).

 

O pesquisador aponta que, nesse contexto, se torna imprescindível o desenvolvimento de pensamento e prática crítica ao que é veiculado no meio midiático. De acordo com ele, agora cabe esperar o que virá primeiro: a regulação dessas tecnologias, novas capacidades de decodificá-las, ou “uma nova ordem social, mediada pela tecnoficção”.

 

Capa da revista RuMoRes. A imagem tem fundo lilás. Há a representação de uma rede, acima dela, fotos recortadas de um olho, uma boca, uma orelha e uma mão que segura um megafone. As letras que formam a palavra rumores são da cor roxa e estão entre os elementos recortados. A palavra Rumores também está escrita no canto alto esquerdo. Na parte de baixo da imagem, em azul, consta o número da revista, meses e ano.
Imagem: reprodução/Portal de Revistas da USP
 

Revista RuMoRes

Celebrando uma nova linha editorial, a revista RuMoRes passa a tratar da crítica da mídia em sua última edição. “O periódico recebe artigos dedicados ao estudo da crítica relacionada às mais diferentes expressões da cultura midiática que tragam contribuições teórico-metodológicas sustentadas em análises reflexivas”. 

A nova edição conta com o dossiê Modalidades da Crítica Midiática em Tempos Críticos. São 12 artigos de pesquisadores e pesquisadoras da Rede Metacrítica de Pesquisa em Cultura Midiática e uma entrevista. Os artigos tratam de temas como inteligência artificial, moda e audiovisual. 

A íntegra da edição atual e as edições passadas podem ser acessadas no Portal de Revistas da USP.

 

 

 


Imagem de capa: Instagram/carnavais_artificiais