Youtubers trans compartilham conhecimento e quebram tabus, aponta estudo

Vídeos mais assistidos trazem relatos muito pessoais e uma narrativa simples e didática, mostra pesquisa da ECA

Vida acadêmica

As múltiplas vozes que desejam se manifestar publicamente muitas vezes não encontram lugar na mídia tradicional. Mas nas redes sociais isso muda um pouco. No caso do YouTube, por exemplo, existe mais espaço para uma grande diversidade de pessoas fazendo ecoar suas reivindicações, estilos de vida e experiências. É a partir desse entendimento que Laiara Alonso realiza a dissertação de mestrado Diversidade no YouTube: Narrativas de Gênero, Identidade e Sexualidade pela Perspectiva de Youtubers Trans.

Foto de Laiara Alonso. Uma mulher branca, com cabelos cacheados escuros, aparentemente curtos e com um largo sorriso. Ela está com uma regata e inclina levemente o corpo em direção à câmera
Laiara Alonso, autora da dissertação de mestrado Diversidade no Youtube: Narrativas de Gênero, Identidade e Sexualidade pela Perspectiva de Youtubers Trans. Foto: acervo pessoal

A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM), sob orientação da professora Brasilina Passarelli. No trabalho, a autora busca adentrar as narrativas de youtubers transexuais e transgêneros, que contam suas próprias experiências e impressões de como é viver a transexualidade.

 

A transexualidade no debate acadêmico: uma necessidade

O interesse de Laiara pelos temas que trata em sua pesquisa já vinha do hábito da autora de consumir conteúdos de youtubers LGBTQIA+. O consumo, no início, era “muito mais por hobby. Até então eu não tinha interesse em transformar em uma pesquisa, uma análise, ou uma coisa mais imersiva.” Com o passar do tempo, no entanto, esse interesse pessoal passou a se apresentar como uma possibilidade de tema para pesquisa,  como a autora explica: “a medida que eu fui consumindo, eu fui vendo que tinha muita coisa ali que poderia ser esmiuçada (...), muito conteúdo que era muito relevante, interessante e que eu encontrava pouca coisa a respeito”.

A partir do interesse da autora em estudar youtubers trans, ela também reconheceu a relevância de discutir questões da população transexual dentro da universidade.  "Eu foquei no público trans, porque tenho muita afinidade e também porque eu acho que é uma maneira de dar visibilidade para esse público, que é bastante marginalizado e que tem pouco espaço no meio acadêmico de modo geral", diz Laiara. Ela acrescenta que quem cria conteúdo LGBTQIA+, “hoje em dia, traz conteúdos muito relevantes que precisam ser trazidos à tona, inclusive no meio acadêmico." A respeito da importância de se falar da população transexual e transgênero na universidade, a autora ainda lembra que

 

“ Há 14 anos a gente é o país que mais mata transexuais e travestis do mundo. A gente sabe que a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de cerca de 35 anos, não chegando nem a metade da média populacional. A gente sabe o quanto essas pessoas têm dificuldades no ambiente de trabalho, o quanto elas são marginalizadas de um modo geral.”

Laiara Alonso, pesquisadora e mestre pela ECA

 

Conhecimento e informação a partir do universo LGBTQIA+ 

Para a análise realizada no trabalho, a autora observou os canais de Mandy Candy, Thiessita, Lucca Najar e Luca Scarpelli.  Dentre os cinco vídeos mais visualizados desses youtubers, ela selecionou os que tinham como principais assuntos diversidade, sexualidade, gênero e temas afins. 

Para a investigação feita nesses canais, foi utilizado o método da etnografia de tela — baseado na etnografia das Ciências Sociais, que busca fazer mapeamentos, registros em diários e conexões a partir da observação de um grupo. No caso da pesquisa de Laiara, foi uma análise quadro a quadro dos vídeos, em que ela destrinchou os temas que eram tratados, as falas, os cortes, edições, olhares, ambientes, cenografia etc.

O método da etnografia de tela foi capaz de mostrar o que contavam as narrativas desses vídeos, o que eles tinham em comum, de diferente, porque eles eram os mais vistos e porque geravam tanta curiosidade. Entre as narrativas encontradas nos vídeos mais visualizados estão aquelas que se referem às diferentes formas e momentos da vida em que tais youtubers começaram a se perceber como transexuais e como e quando iniciaram seu processo de transição.

Print da tela do YouTube com destaque no rosto de Mandy Candy ocupando praticamente toda a tela. Ela é uma mulher branca, de cabelos ruivos, olhos azuis, que está olhando para a câmera. Ao fundo há vários bichos e objetos de pelúcia, com destaque para uma pelúcia do emoji de cocô sorridente
 Cena de vídeo de  Mandy Candy, uma das youtubers analisadas. Reprodução/ Youtube

A youtuber Mandy Candy conta que sentia haver algo errado com ela e que era preciso fazer alguma coisa a respeito disso. Revela ainda que as pessoas confundiam sua voz com a de sua mãe ao telefone e fala até mesmo que se sentia aprisionada em seu próprio corpo. Já o youtuber Lucca Najar conta que desde criança se percebeu como uma pessoa trans, mas que não sabia dar um nome para essa sensação. Ele explica ainda que precisou recorrer a psicólogos, amigos e familiares para entender o que sentia. Também dá conselhos dizendo que cada um tem seu tempo de descoberta e aceitação. 

Outra questão que aparece na pesquisa se refere aos relatos sobre o processo de redesignação sexual, em que os youtubers trazem sua própria experiência e falam dos valores da cirurgia na rede particular, contam sobre o tempo de espera para fazê-la pelo Sistema Único de Saúde (SUS), falam do pós-operatório, que é muito demorado e doloroso, do resultado etc. Mandy conta que nem todas as pessoas trans sentem necessidade de fazer a cirurgia, mas, por outro lado, o preço elevado da cirurgia e o longo tempo de espera para fazer o procedimento pelo SUS são fatores de sofrimento para muitas mulheres trans que desejam realizar o procedimento.

Além disso, no estudo etnográfico feito por Laiara emergiram vários outros temas, como a voz, a questão da passabilidade (que diz respeito ao quanto a aparência de uma pessoa trans evidencia ou não sua transgeneridade), o uso de banheiros públicos, a hormonização, entre outros.  Esses canais acabam servindo, assim, como uma rica fonte de informação para muitas pessoas transexuais e transgêneras que estão em processo de descoberta, afirma Laiara.

Para a autora, a pesquisa a partir do conteúdo digital produzido por pessoas LGBTQIA+ é um passo para um território repleto de possibilidades. “Tem muita ciência a ser feita a respeito disso (...) tem que usar o espaço que a gente tem para conhecer universos novos, universos que estão acontecendo ao nosso redor.”

 

 


Imagem de capa: Lucca Najar, um dos youtubers que teve seu canal analisado na pesquisa de Laiara Afonso. Reprodução/ Facebook.