Conheça as pesquisas desenvolvidas na ECA por pós-doutorandos negros

Pesquisadores foram contemplados em edital de bolsas de estudo da Pró-reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP

Vida acadêmica

Os projetos de pesquisa de Deyse Alini de Moura, Helder Alves de Oliveira e Julio César Sanches foram selecionados na segunda edição do programa da USP de Bolsas de Pós-Doutorado para Pesquisadoras e Pesquisadores Negros Brasileiros. O programa é uma iniciativa da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), em parceria com a Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI) e tem como objetivo aumentar a diversificação racial de pós-doutores e pós-doutoras e, assim, contribuir para a diversidade racial e de gênero de candidatos a vagas de docentes em universidades brasileiras.

O edital recebeu o total de 1.016 inscrições. São 700 inscrições a mais do que a edição anterior, voltada apenas para pesquisadoras negras que concorreram a somente três bolsas. Dessa vez, foram disponibilizadas 50 bolsas no valor de R$ 8.479,20 mensais com duração de 12 meses e a possibilidade de prorrogação por igual período.

Os contemplados deram início a suas pesquisas no segundo semestre de 2023.

 

Etnomídia Indígena

Foto de uma mulher negra de cabelos curtos e loiros, sentada e sorrindo para a câmera. Ela usa uma camisa cinza e sobretudo bege, óculos e um colar redondo texturizado em cores verde e dourado. Na mesa à sua frente, dois livros estão abaixo de um computador com alguns fios conectados na lateral da tela. Sua mãos estão posicionadas ao lado do computador e em uma delas ela segura uma caneta. Do lado do computador, parte de uma bolsa aparece na imagem. Atrás da mulher, janelas transparentes com grandes mostram o lado de fora da sala.
Deyse Moura, jornalista e pós-doutoranda da ECA. Foto: Rosiane Lopes/LAC

Deyse Moura é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). No mestrado, Deyse desenvolveu estudo sobre o rádio, com a dissertação A comunicação pública no rádio e o impeachment de Dilma Rousseff: Um estudo de caso sobre A Voz do Brasil, na qual analisou como o programa radiofônico pautou o processo de impeachment da então presidente. O trabalho foi transformado em um e-book pela editora da UFRN.

O tema da etnomídia indígena surgiu no seu doutorado, quando a jornalista pesquisou como o podcast pode ser utilizado na formação complementar em saúde, com base em informações disseminadas entre os povos indígenas. Agora, no pós-doutorado, sua intenção é aprofundar os estudos da tese, expandindo-os para outros aspectos da vida indígena e das pautas dessa população. 

Na ECA, Deyse desenvolve o projeto de pesquisa intitulado Etnomídia Indígena: oralidade e ancestralidade na incorporação do podcast como instrumento de sobrevivência à Pandemia de Covid-19, supervisionada por Luciano Maluly, docente do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE)

“A gente tem uma juventude [indígena] muito aguerrida, eles estão se apropriando das ferramentas de comunicação. Então a minha ideia era entender como é que a população indígena vem utilizando podcast para debater as suas lutas”, explica Deyse. Ela conta que seu projeto prevê esse estudo a partir da pandemia de covid-19, período em que houve uma lacuna de informações nas comunidades, mas que foi suprida pelos nativos com o suporte desse formato sonoro.  A pesquisadora pretende falar com lideranças de etnias indígenas de todas as regiões do país. Segundo ela, as entrevistas farão parte de uma série de podcasts. 

Deyse explica não desejar que sua pesquisa se limite somente à teoria, mas objetiva colocar em prática os conceitos por ela já estudados. “Quero aproveitar a oportunidade desse pós-doutorado para fazer essa atividade de forma a contextualizar algo que eu já vinha estudando no doutorado, e agora ter essa prática de colocar os conceitos estudados em produto, poder estudar narrativa, entrevistar e contar as histórias e dar voz: contar as histórias, mas deixar que as pessoas contem as suas também”, diz. 

No momento da entrevista para esta reportagem, Deyse estava no processo de pesquisa bibliográfica documental e de definição de fontes e possíveis entrevistados.

 

“Quando eu fui uma das 50 contempladas e contemplados, eu fiquei muito feliz. É uma oportunidade ímpar, é uma iniciativa pioneira, é incrível, e eu espero que nós não sejamos os únicos, que sejamos apenas os primeiros”.

Deyse Moura, pós-doutoranda

 

Racialidade na publicidade de produtos de beleza no século XX

Foto de um homem negro, olhos escuros e bigode escuro que posa para a camêra. Ele usa uma camisa xadrez com fundo azul escuro e linhas alaranjadas. Ele usa um turbante de tecido cinza com uma parte branca no topo. O fundo da imagem é marrom.
Julio Sanches, doutor em comunicação e pós-doutorando da ECA. Imagem: reprodução/LinkedIn

Julio César Sanches é doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente faz pós-doutorado na ECA com supervisão de Leandro Leonardo Batista, docente do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP). Seu projeto de pesquisa Branquitude, antinegritude e diversidade racial na formação da identidade nacional brasileira na publicidade de produtos de beleza (1901-2000) tem como objetivo produzir uma análise do elemento racial na publicidade brasileira de produtos de beleza no século XX. 

Seu interesse em tratar deste tema tem origem em sua tese de doutorado, intitulada Convocações Biopolíticas e Imperativos da Boa Forma: corpo, saúde e mídia no Brasil (1930-2000), na qual analisa como se deu o surgimento da ideia do “corpo em boa forma” na mídia brasileira. 

Conforme Julio debatia o surgimento da cirurgia plástica no Brasil e o que a imprensa brasileira falava sobre o assunto, tema do primeiro capítulo da tese, identificou a existência de colunas de beleza destinadas às mulheres que, comumente, diziam que esse público precisava corrigir suas características físicas, como o tamanho do nariz e da boca. Essas ideias eram reiteradas em publicidades de clínicas de cirurgiões plásticos que ocupavam o mesmo espaço desses textos.  No início de 2023, Julio e o orientador de sua tese de doutorado, Igor Pinto Sacramento, produziram o artigo Só a cirurgia plástica pode consertar o seu nariz: racismo e eugenia na coluna Elegância e Beleza de O Cruzeiro na década de 1940. O artigo aborda o fenômeno da cirurgia plástica a partir das recomendações de beleza da coluna Elegância e Beleza, da revista O Cruzeiro.

“Para mim era interessante e importante tentar entender como os meios de comunicação, e principalmente a publicidade, produziam um discurso sobre a necessidade de corrigir determinadas silhuetas, da modificação de fenótipos”, explica. Segundo o pesquisador, essa necessidade está ligada à ideia de repulsa às pessoas negras e indígenas e é reflexo de um “discurso eugenista que buscava embranquecer esteticamente a sociedade brasileira”.

No momento da entrevista, Julio estava na fase de coleta dos documentos para compor o corpo de sua pesquisa. Como seu projeto tem como intenção fazer um mapeamento do século XX, suas buscas têm foco nas primeiras décadas do período. Sua pesquisa fará parte do campo da história da comunicação e da mídia no Brasil e poderá servir de referência para outros pesquisadores.

 

“É comum que muitas pessoas negras não alcancem o nível do pós-doutorado. Então é pensar que nós, dessas 50 pessoas que entraram agora neste edital, somos o exemplo vivo de que é possível chegar e que por mais que existam barreiras socioeconômicas, do próprio sistema que é extremamente racista, a gente possa também fazer com que essas 50 pessoas se multipliquem”. 

Julio César Sanches, pós-doutorando

 

 

Aspectos composicionais da Modelagem Gestáltica

Helder Alves de Oliveira, doutor em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), propõe um plano de aula para a pós-graduação sobre aspectos composicionais da Modelagem Gestáltica — metodologia analítico-composicional, originada da convergência entre dois campos do conhecimento: Teoria da Gestalt e Modelagem Sistêmica. 

A partir dessa metodologia, será possível identificar disposições estruturais de um intertexto (obra musical pré-existente) que possibilitam a criação de uma nova obra, por exemplo. 

O projeto inclui atividades de pesquisa e ensino. Na parte da pesquisa, o pós-doutorando propõe um “refinamento dos conceitos da metodologia da Modelagem Gestáltica e modelagem do Choros N.º 2 de Villa-Lobos”, além do “desenvolvimento dos programas computacionais de segmentação melódica e modelagem gestáltica dos Choros N.º 4 e 5, de Villa-Lobos”.  Na parte de ensino, Helder propõe ministrar a disciplina Tópicos Avançados em Análise Musical na pós-graduação, em que busca abordar a modelagem sistêmica e gestáltica. Ao final do curso, ele indica em seu projeto que os estudantes serão capazes, por exemplo, de “aplicar efetivamente diversas ferramentas analíticas para descrever como uma determinada peça é organizada” e “compor música original após os modelos desenvolvidos na análise”.

 

“Que não sejamos os únicos”

“Receber uma aprovação deste edital, de certa forma, fala muito sobre a qualidade do meu projeto, a qualidade da minha escrita acadêmica e também sobre a minha trajetória, então isso me alegra”, comenta Julio. Ele também aponta estar contente por conseguir falar sobre temas da racialidade no Brasil e sobre o debate do racismo no campo da comunicação,  ainda muito embranquecido, avalia o pesquisador. 

“Eu estou animada e empolgada com esse momento novo da minha vida. Eu não esperava estar aqui na USP, mas agora que estou espero aproveitar essa experiência para descobrir quais são os próximos passos. O que eu espero é realmente honrar não só aqueles que me antecederam, mas honrar todos os pretos e pretas que gostariam de estar aqui também vivendo isso”, diz Deyse. 

Os pós-doutorandos chamam a atenção para a enorme quantidade de pesquisadores e pesquisadoras negras que se inscreveram no edital, o que indica a demanda e a necessidade de mais oportunidades, não só na USP como em outras universidades. Segundo Julio, iniciativas como essa são de extrema importância, já que asseguram a permanência desses profissionais em instituições de ensino, não só no nível da graduação, mas em outros, como o pós-doutorado.

 


Imagem de capa: reprodução/Pexels