Além da produção científica: livro apresenta vivências de pesquisa

Publicação é resultado de intercâmbio de pesquisadores brasileiros no México; doutora formada pelo PPGMPA é uma das organizadoras

Vida acadêmica

Quando se fala em pesquisa acadêmica, a primeira coisa que vem à cabeça são as descobertas científicas que levam ao desenvolvimento de conceitos ou tecnologias que impactam a vida em sociedade. Mas, com bastante frequência, o trabalho de investigação também se torna uma importante jornada subjetiva para o pesquisador, que descobre novos modos de ser e estar no mundo a partir do encontro com o outro e consigo mesmo.  

Foi o que Marina da Costa Campos, doutora pelo Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) vivenciou durante o estágio de pesquisa realizado no México entre outubro de 2018 e março de 2019. A experiência dela e de outros 12 pesquisadores brasileiros é compartilhada no livro Caminhos, resistências e identidades: vivências e pesquisas que conectam Brasil e México, lançado em maio.

Marina conta que o livro nasceu a partir de uma “rede muito especial de afeto, de troca de experiências e de pesquisa interdisciplinar” formada por 25 estudantes de doutorado de distintas áreas do conhecimento e diversos cantos do Brasil. Em comum, todos tinham o México como destino de intercâmbio acadêmico, e o grupo de whatsapp inicialmente criado para troca de informações sobre a viagem deu origem a fortes laços de parceria e amizade.

Foi durante um dos encontros do grupo, já de volta ao Brasil, que surgiu a ideia da publicação. “Os relatos deste livro abrangem não somente os resultados de pesquisa que o intercâmbio trouxe para cada doutorando, mas, sobretudo, histórias que vão além do conteúdo acadêmico – histórias que carregam dificuldades, êxitos, encontros e afetos.” A proposta central, segundo Marina, é “oferecer um relato pessoal sobre o nosso percurso, como pesquisadores, em outro país - nossos modos de ver, de sentir, e, para usar um termo em voga, de sentipensar.”

Capa do livro Caminhos, Resistências e Identidades
Foto: Academia.edu . 

Dividido em três partes (Caminhos, Resistências e Identidades), o livro apresenta textos de 13 autores que, ao narrar suas investigações de campo, refletem sobre temas como a relação dos mexicanos com sua identidade e os modos de resistência das populações indígenas. Sem esquecer da diversidade que caracteriza o grupo de pesquisadores, os relatos dialogam entre si, com divergências e convergências “de visões de mundo, de percepções do país e de sentimentos que afloraram nesse período”. Esse espírito de intercâmbio constante que norteia a busca pelo conhecimento e o respeito à diversidade se faz presente no poema de Gina Valdés que abre o livro: “Hay tantísimas fronteras que dividen a la gente / Pero por cada frontera existe también un puente”. 

Além de representar um retorno dos investimentos públicos em pesquisa, Marina destaca o papel que publicações como essa desempenham na atual conjuntura de ataques à Ciência, ao “manifestar nossa defesa pela continuidade de uma política comprometida tanto com a internacionalização da Educação, da Ciência e da Tecnologia como da realização e manutenção da pesquisa acadêmica em nosso país.”

Caminhos, resistências e identidades: vivências e pesquisas que conectam Brasil e México é organizado por Marina da Costa Campos (USP), Gabriel Simões (Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ), Matheus França (Universidade Federal de Goiás – UFG) e Vanessa Moraes (Universidade de Brasília – UNB) e está disponível para download gratuito via Academia.edu

 

Conexões no superoitismo do Brasil e do México

Em sua tese de doutorado, Marina comparou a produção audiovisual em Super-8 no Brasil e no México, com foco em seis curtas-metragens que refletem sobre a “contracultura, os regimes autoritários e as reverberações do ano de 1968 (no Brasil, a implementação do AI-5; e no México, o massacre de 2 de outubro em Tlatlelolco).” Intitulado Suspensões do tempo: o superoitismo experimental no Brasil e no México na década de 1970, o trabalhou foi desenvolvido no PPGMPA sob a orientação do professor Rubens Machado Junior, e analisa obras dos brasileiros Geneton Moraes Neto, Edgard Navarro e Sérgio Péo, e dos mexicanos David Celestinos, Alfredo Gurrola e Sergio García. 

A ideia de fazer um estudo comparado das duas cinematografias surgiu quando Marina conheceu o trabalho do professor Álvaro Vázquez Mantecón, que realizou um mapeamento das produções em Super-8 no México nos anos 70 e 80. “Percebi que ambas as realizações apresentavam aspectos em comum como a clandestinidade e marginalidade das obras, o apelo à ironia e ao deboche como forma de crítica ao status quo e o desejo em experimentar a linguagem cinematográfica propondo e convocando outros modos de olhar, de se comunicar e de compreender a imagem.” A pesquisadora também afirma que esse tipo de investigação permite observar e refletir sobre as singularidades e o que há de comum entre os países latino-americanos. 

Contemplada com a bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) da CAPES, Marina realizou seu estágio de pesquisa no México de outubro de 2018 a março de 2019, sob supervisão do professor Álvaro Mantecón. Vinculada ao Posgrado em Historiografía da Universidad Autónoma Metropolitana (UAM), na Cidade do México, ela pesquisou o acervo da  Filmoteca da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e da Cineteca Nacional, além de ter realizado consultas na Biblioteca Nacional de México (UNAM) e na Biblioteca do Colégio de México. 

Ao relembrar as sessões de projeção durante a pesquisa, Marina destaca a importância deste tipo de experiência. “Estar em contato com o filme em sua manifestação principal de sua época (película/projeção) é indescritível, pois remonta a atmosfera dos anos 70 e 80 e da carga aurática que aquelas sessões de filmes possuíam devido a fragilidade do suporte (cada projeção pode estragar o material) e das raríssimas ocasiões em que se faziam cópias dos filmes – logo, são obras que tiveram uma circulação restrita com poucas exibições.” É como se a pesquisadora pudesse voltar no tempo e experimentar – ao menos em parte – a sensação de ver aqueles filmes no momento histórico em que foram lançados. 

Frames do curta La Segunda Primera Matriz
Fotogramas do curta-metragem La segunda primera matriz (1972), de Alfredo Gurrola. 

O trabalho de pesquisa contemplou ainda visitas ao acervo e a exposição permanente do Centro Cultural Universitário Tlatelolco, edifício dedicado à memória dos 300 estudantes mortos no massacre de 2 de outubro de 1968. Assim que chegou à Cidade do México, Marina pôde acompanhar uma série de homenagens às vítimas, por ocasião do aniversário de 50 anos do massacre. “Centenas de estudantes foram mortos, detidos e torturados pela Força Nacional à mando do presidente da época, Gustavo Díaz Ordaz. A chacina é o ponto emblemático de uma série de conflitos entre estudantes e Polícia ao longo de 1968. Os jovens criticavam a falta de liberdade, a detenção de ativistas e estudantes, a desigualdade social e a realização das Olimpíadas no país.”

As obras mexicanas e brasileiras analisadas pela pesquisadora revelam uma parte das respostas artísticas à angústia e aos processos de resistência que tiveram em 1968 seu ponto culminante, com manifestações protagonizadas por jovens em diversas partes do mundo. Segundo a autora, os curtas-metragens experimentais produzidos em Super-8 funcionam como um retrato desse momento particular do século 20, uma “suspensão do tempo, em que o desencanto atua como elemento emblemático na relação que esta geração estabelece com o seu passado (o desejo de rompimento e a nostalgia), seu presente (a (des)obediência) e seu futuro (a utopia e a desilusão).” 

A tese Suspensões do tempo: o superoitismo experimental no Brasil e no México na década de 1970 está disponível para download gratuito no Banco de Teses e Dissertações da USP.