Nota de pesar - João Acaiabe

COMUNICADOS

São Paulo, 1 de Abril de 2021.

 

João Acaiabe. João olhou nos olhos de Iku. Sim, porque nem tudo se resume a essa contabilidade terrível da perda, embora sejamos forçados a atravessá-la. Quem conheceu João está ouvindo sua risada e seu chamado para a vida. Ele era assim, desde a sala de ensaio, uma presença a exigir de todos um engajamento no vivo.

João foi da turma de 1968; veio com a Escola para  o campus e estava no palco, falando de seus dias de Escola de Arte Dramática, por ocasião da festa de 50 anos da Escola de Comunicações Artes.

No teatro, no cinema, na televisão, João foi um contador de histórias. Ele dizia que Antônio Abujamra o fez entender isso, no final dos anos 1970: ele devia contar histórias como um griot. E assim, muitos lembrarão de João: os que foram crianças em frente  à televisão, assistindo ao Bambalalão; ou os que, crianças, viram sua figura no Sítio do Picapau amarelo. Gerações diante de um griot brasileiro, que agora vai se tornando Ancestre.

A figura emblemática das peças de Plínio Marcos, o professor de teatro.  João começou o ano estreando com jovens artistas em um projeto no Centro Cultural São Paulo, e como tantos artistas, tinha planos para o ano, planos para a vida, numa luta por ela, com ela.

Riremos na voz de João, sempre. Um ator que podia ser a voz ancestral no Rei Leão, mas também a voz do não em O dia que Dorival encarou a guarda. Seremos, nós, também, nesse momento de horror e regressão, capazes de encarar a guarda?

O Orum recebe de volta um seu.

Há um documento em vídeo, em que João lembra o corifeu em Missa Leiga, de Chico de Assis e direção de Ademar Guerra, em 1972, em que ele era João Batista. Diz o corifeu:

Nos acostumamos à morte e ao genocídio

Como adquirimos vícios gerais como fumar e beber

Estamos resistentes e intoxicados a qualquer notícia

Esperamos, como num jogo, sermos personagens da tragédia

Aí, então, nos desesperamos e tomamos providências

Aí, então, gritamos, mas ninguém nos ouve

Porque o ar está poluído de berros lancinantes

Aí, então, tentamos explicar o mal do mundo

Mas ninguém nos ouve,

Ninguém tem ouvidos para estas coisas.

Somos vítimas sintomáticas

Do nosso desinteresse pela vida

Pela nossa apropriação sôfrega

Das migalhas e farrapos da alegria

Sobradas do contínuo festim da violência

A solidariedade humana é uma doutrina

De condenados à morte, imediatos

O amor é o privilégio dos que vivem

Sob risco de vida, nos andaimes do mundo

Sob a marca da fatalidade planejada, marginal

Debaixo das ordens de guerra e destruição

O paradoxo do amor é sua própria destruição

Quem entende de perigos é o equilibrista.

Quem sabe da felicidade

É o recém-afogado no mar

Certas facilidades de sobrevivência

Egoístas e pessoais castram no homem

Sua sensibilidade geral

A notícia do mundo é tão tragicamente forte

Que a humanidade devia chorar

E se afogar num autodilúvio de lágrimas

Ou então refletir sobre as formas de tortura

Repensar as várias modalidades de assassinato

Mastigar a fome e engoli-la sem água

O homem está calmo e feliz

À espera de que invadam sua casa

Atirem sobre seu filho e violentem sua mulher.

Isso já aconteceu, só falta perceber

(...)

É preciso começar alguma coisa

Que liberte a vida

Que não limite o conhecimento

Pelas grades dos sentidos

Olhos, ouvidos, olfatos, tato e sonho.

Só uma consciência em cacos

Entende um mundo despedaçado

Só um ser inacabado e abandonado

Tem terror do finito e do infinito.

É preciso seres desiguais e concordantes

Ao invés de iguais e discordantes

E isso já basta para uma nova forma de amor.

 

Senhor!

Deixa que eu seja como a flor do mato

Semeada pelo vento ao sabor do acaso

 

Senhor!

Deixa eu ser como o riacho louco que desenha

Em curvas inúteis sua própria estrada

 

Senhor!

Deixa eu ser como a ave

Que acaba de aprender a usar as asas

Mas não sabe para onde voar, apenas voa

 

Senhor!

Deixa que eu viva em constante amor

Sem poder saber nunca o que é o amor.

 

ESCOLA DE ARTE DRAMÁTICA