CCA | Departamento de Comunicações e Artes



Como a pandemia de covid-19 impacta o mundo do trabalho

Crise causada pelo coronavírus traz à tona desafios sociais e políticos de um mercado de trabalho cada vez mais informal e baseado em tecnologias de comunicação 

Comunidade

Desde que os governos estaduais e o Ministério da Saúde passaram a recomendar a quarentena para mitigar a propagação da covid-19, muitas empresas e instituições públicas estão adotando o teletrabalho, também conhecido como home office. No caso de serviços essenciais que não podem ter atividades presenciais suspensas, equipes têm sido reduzidas e submetidas a rodízio e escalonamento

Enquanto alguns empresários e governantes temem os efeitos da desaceleração das atividades econômicas, trabalhadores sentem a pressão de um contexto de crescente fragilização de direitos, que a pandemia parece aprofundar. Um exemplo é a Medida Provisória 936/2020, publicada pelo governo federal em 1º de abril. O documento permite a suspensão do pagamento de até 100% dos salários, por um prazo de no máximo três meses. A compensação que o governo oferece ao trabalhador corresponde a uma porcentagem calculada sobre o seguro-desemprego a que ele teria direito, e não sobre o salário. Essa medida, portanto, coloca no horizonte de milhões de pessoas a possibilidade de uma grande perda em suas rendas.

“Em primeiro lugar, é preciso destacar que as medidas de isolamento social são necessárias, porque não existe cobertura de infraestrutura para atendimento – hospitais, leitos, médicos, respiradores – para muitas pessoas ao mesmo tempo.” A afirmação é da professora do Departamento de Comunicações e Artes, Roseli Figaro, que coordena o Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT). Fundado em 2003, o CPCT se dedica a compreender como a comunicação e suas tecnologias se relacionam com as constantes transformações no mundo do trabalho e nos discursos associados a ele. 

Se a situação é preocupante para aqueles com carteira assinada, trabalhadores autônomos e informais – como os entregadores de aplicativos de comida – se encontram em condições ainda mais difíceis. “Espremida no SUS, sem moradia adequada, sem saneamento básico, sem emprego decente, vivendo de bicos e do trabalho em empresas de plataforma, [a população mais pobre] não tem a quem recorrer. Se não trabalha, não ganha, não pode ficar doente, não pode recolher-se para a prevenção. É uma situação dramática, desumana, bárbara”. A docente enfatiza como a Reforma Trabalhista aprovada no mandato de Michel Temer e a política econômica do atual governo contribuem para o agravamento deste quadro, com o aumento do desemprego e da informalização do mercado de trabalho

Outro fator que tem contribuído para o crescimento dos empregos informais é a expansão da chamada gig economy. O termo é usado para descrever um conjunto de formas alternativas de trabalho, de caráter autônomo e temporário, caracterizadas pela ausência de vínculo empregatício e pela frequente mediação de plataformas de serviços on-line, como aplicativos de entrega ou de transporte. Na gig economy, a maioria dos trabalhadores não tem acesso a vale-alimentação, férias remuneradas, décimo terceiro salário e seguridade social

Em momentos como a atual crise causada pelo coronavírus, as consequências sociais desta ausência de direitos trabalhistas podem tomar proporções desastrosas, custando a saúde e até mesmo a vida de trabalhadores e suas famílias. Além disso, as mudanças nas formas e relações de trabalho durante a pandemia, como a MP 927/2020 demonstra, podem representar um risco para os direitos que trabalhadores formais ainda possuem. Segundo Figaro, a covid-19 traz ainda outros desafios sociais e políticos importantes, que têm a ver com o papel cada vez maior desempenhado pelas tecnologias de comunicação no trabalho e em outros âmbitos de nossas vidas. 

 

Uma ilustração. Nela, um entregador, utilizando um capacete e uma mochila de entrega verde, está parado em frente a uma casa, olhando para a janela. Dentro da casa, uma pessoa de blusa vermelha, que pode ser visa pela janela, carrega um disco de vinil. Abaixo da janela, do lado de fora da casa, há uma faixa vermelha em que está escrito "Fiquem em casa, é um ato de amor".
Plataformas de serviços on-line como Uber Eats e Ifood estão por trás da expansão da gig economy. Imagem: Fluxo Marginal/ Instagram
As TICs e a intensificação da jornada de trabalho

TIC. Você pode ainda não conhecer essa sigla, mas sabe muito bem o que ela significa. As Tecnologias da Informação e da Comunicação estão presentes em nosso cotidiano na forma de redes, hardwares, aplicativos e plataformas que possibilitam o contato entre pessoas e a troca de informações para os mais diversos fins. Em tempos de distanciamento social, as TICs ganharam ainda mais protagonismo, sobretudo no mundo do trabalho.  

Para quem trabalha em home office, internet e ferramentas como Whatsapp, Zoom e Hangouts são indispensáveis. Mas a conexão constante proporcionada por esses recursos, especialmente aqueles disponíveis no celular, pode tornar os limites entre trabalho, afazeres domésticos, vida pessoal e lazer menos definidos. Em um mundo pautado pela avalanche de informações e reações em rede, tudo é urgente, e quando menos se espera, uma demanda de trabalho que em outros tempos seria adiável pode se impor em pleno horário de descanso. 

“As TICs intensificam a jornada de trabalho e a expandem para a vida privada, não há mais espaço fora do trabalho. Tudo e todo o tempo é trabalho. Você não descansa. Isso traz danos para a saúde física e mental das pessoas”, comenta Figaro. Além do eventual impacto na privacidade e nas relações familiares do trabalhador, a forma como as tecnologias de comunicação estendem a jornada laboral traz ainda outro problema: fica difícil mensurar e remunerar devidamente o tempo dedicado ao trabalho fora do expediente regular

Para a professora, essa nova relação com o trabalho e com o tempo representa uma verdadeira mudança cultural, que exigirá disciplina e reorganização por parte dos trabalhadores. “Todos os suportes que permitem a conexão para a comunicação demandam do sujeito uma adequada gestão de si para trabalhar, refazer normas de trabalho que antes eram presenciais. Há uma tensão para o desenvolvimento de novas rotinas para se implementar o trabalho”. Figaro ressalta também como esse contexto exige o desenvolvimento de novas habilidades para o uso das TICs, que impactam especialmente trabalhadores mais velhos e menos escolarizados. 

O uso de recursos próprios do trabalhador, como computador, internet e energia elétrica é outra questão a ser considerada. A Consolidação das Leis do Trabalho prevê que esses e outros detalhes relativos ao home office devem ser negociados diretamente entre funcionário e empregador, ficando estabelecidos no contrato de trabalho. Falta, portanto, uma legislação mais específica. A forma com que as TICs utilizam os dados que produzimos ao trabalhar também carece de regulamentação

 

O conceito de trabalho do consumidor

Figaro chama atenção para a grande quantidade de dados gerados a cada vez que usamos as TICs. “Tudo que você digita, fala, mostra no seu computador ou celular é um dado.” As várias plataformas que acessamos ao utilizar computadores e celulares recolhem inúmeras informações sobre hábitos de consumo e navegação nas redes. Além disso, é sabido que microfones e câmeras dos nossos dispositivos captam dados do que acontece ao redor. “Esse dado – em sentido figurado – se transforma numa montanha de dados, em uma mina, que será minerado, reorganizado e vendido com diferentes finalidades: desde publicidade até interesses políticos, como vimos recentemente com os casos do Brexit, eleições nos EUA e no Brasil.” Segundo a docente, essa infinidade de dados tem um valor tão grande quanto a falta de transparência sobre seu recolhimento

Hoje, todos nós produzimos uma imensa quantidade de conteúdos para as gigantes da web, que lucram muito oferecendo pouca coisa em troca. Com um terço da população mundial em isolamento, as perspectivas do GAFAM (acrônimo para o grupo de empresas formado por Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) nunca foram tão promissoras. A professora explica: “do trabalhador do Uber, da Amazon, (..) ao consumidor dos serviços online, ao usuário de Facebook etc., todos nós, em escalas diferentes de qualidade de informação, trabalhamos para as plataformas.” Chamado de “trabalho do consumidor” pela professora Ursula Huws, da Universidade Metropolitana de Londres, esse fenômeno evidencia a urgência de medidas para regular a coleta, o processamento e o fornecimento dos dados produzidos com o uso das TICs. Trata-se de mais um desafio para a manutenção de direitos individuais e coletivos em meio a transformações cada vez mais radicais nos conceitos de trabalho, consumo e mercadoria. 

Ainda é incerto quanto tempo a pandemia e o distanciamento social devem durar. Também não é possível saber agora quais legados a crise deixará. Não sem um certo ceticismo, Figaro avalia que o atual momento pode ser um ponto de inflexão na forma como vemos nossas relações virtuais, com consequências que podem se estender para o plano concreto, o das relações sociais. “Sem dúvida, este é um momento de virada. Estamos premidos e não temos outra saída. O saldo positivo é o aprendizado. Talvez possamos nos organizar de forma mais solidária para podermos fazer as mudanças progressistas e humanistas de que necessitamos.” Dentre essas mudanças, a docente ressalta, está a superação de narrativas exploratórias (como a do “empreendedor de si”) e a reivindicação do trabalho decente


Imagem de capa: Reprodução/Unsplash