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Comunicação “xamânica” é a chave para a relação entre humanos e natureza

Artigo escrito por docentes da ECA e apresentado em congresso internacional propõe uma visão decolonial da comunicação
 

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Visando levantar formas de comunicação que rompam com a noção de hierarquia entre humanos e natureza, os docentes Vitor Blotta, do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), e Thaís Brianezi, do Departamento de Comunicações e Artes (CCA), produziram o artigo The nature of communication and the communication of nature: revisiting critical theory and nature through decolonial environmental communication and human rights education in Brazil, apresentado na 5ª Conferência da Sociedade Sul-Africana de Teoria Crítica, que ocorre todo ano na África do Sul.

No artigo, Vitor e Thaís criticam a racionalidade instrumental com a qual governos e instituições elaboram meios sofisticados para alcançar seus fins e exercer controle sobre a natureza, sem nunca refletir, contudo, sobre a validade e qualidade de tais fins. A proposta dos pesquisadores é trazer referências das culturas do sul global, como a perspectiva ameríndia, para romper as barreiras entre o eu e o outro, além da noção de bem-viver, também de grupos indígenas americanos, que busca harmonizar a relação entre os seres humanos e a natureza, afastando-se da lógica do lucro e do desenvolvimento.

Como exemplos de comunicação decolonial ou comunicação “xamânica”, conforme é explicado no artigo, os pesquisadores apresentam dois estudos de caso. O primeiro é o da Sumaúma, agência de notícias sediada às margens do rio Xingu, que atua denunciando a forte exploração da natureza no local, além de organizar um projeto de formação de jovens periféricos. O segundo é o Projeto Observatório de Direitos Humanos nas Escolas (PODHE), no qual as formas não-hierarquizadas de comunicação são trabalhadas na prática, visando criar um ambiente de educação no qual todas as opiniões são respeitadas, mesmo quando divergentes ou opostas.

 

Por que a razão instrumental é um problema quando se fala em meio ambiente? 

Foto de uma mulher branca sorrindo. Ela tem cabelos lisos e castanhos, que estão presos, veste blusa preta de mangas curtas, usa colar com miçangas amarelas, vermelhas e azuis e óculos de armação redonda e transparente. Ao fundo, à esquerda da foto,  há uma parede de tijolos e, à direita, uma parede  com escritos em tinta azul.
Thaís Brianezi, docente do Departamento de Comunicações e Artes (CCA). 

A razão instrumental é um conceito que se refere à utilização da razão como um meio para alcançar fins ou objetivos. Nela, os objetivos determinam o processo de pensamento sem necessariamente passar por uma reflexão crítica. Em entrevista ao Laboratório Agência de Comunicação (LAC) da ECA, o professor Vitor explica que a razão instrumental parte de um princípio de dominação da natureza para emancipação dos sujeitos, gerando uma relação desigual. Ainda que se emancipe o sujeito de uma relação anteriormente contemplativa e religiosa com a natureza, cria-se também uma ideia de dominação da natureza e de bens criados a partir dela, como ferramentas, comunicação midiática e até mesmo a comunicação interpessoal.

“Eu acho que o instrumental traz em si uma ilusão de simplicidade”, complementa a professora Thaís, “que é uma ilusão do conhecer para controlar também, para dominar, para explorar”. Nesse aspecto, ela afirma que ao trazerem outros olhares, reconhecendo a comunicação como fenômeno não separado da cultura e da natureza, eles fazem uma provocação na qual os direitos humanos e os direitos dos seres da natureza estão juntos nessa não-exploração, nessa tentativa de construção coletiva. E é nesse sentido que entra o que eles chamaram de “comunicação xamânica”.

 

"A comunicação xamânica é aquela que tenta se entregar para o outro e fazer com que a voz do outro atravesse e modifique a gente, para que a gente consiga respeitar o outro profundamente."

Vitor Blotta, docente do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE)

 

Foto de um homem branco com um ligeiro sorriso. Ele é careca, tem barba e bigode castanhos, olhos castanhos, veste camisa branca e terno azul-marinho. Atrás dele, folhas de árvores levemente desfocadas.
Vitor Souza Lima Blotta, docente do CJE. 

O conceito de comunicação xamânica vem justamente do processo de iniciação dos pajés Yanomami. Nele, o aspirante deve se isolar do mundo para entrar em contato com os xapiris, os espíritos da floresta, em um processo que depende de sua capacidade de se colocar no lugar dos espíritos e ganhar sua confiança. Esse processo demanda tempo, paciência, cuidado, esforço e vontade de confiar e de se colocar no lugar do outro. Para explicar a comunicação xamânica, os autores se valem de exemplos de formas de pensar presentes nos povos originários das Américas: a noção de bem-viver e o perspectivismo ameríndio

O bem-viver, como explica Thaís, é um conceito-movimento latino-americano que parte de vivências dos povos dos Andes e da Amazônia, os quéchuas e os aimará, presentes em países como Bolívia e Equador. Esse conceito defende um viver em plenitude, um viver numa comunidade ampliada, natureza e humanos. A docente afirma:  “viver em plenitude com as comunidades, animais, plantas, minerais, é conseguir enxergar o quanto o rio tem vida, o quanto a terra tem vida”. 

O perspectivismo ameríndio, explica Vitor, não se trata de um retorno às formas antigas de relação com a natureza, mas sim de uma busca por deslocar a ideia de sujeito e objeto, onde os humanos são sujeitos e a natureza e seres não-humanos são objetos. Assim, o docente afirma que o perspectivismo ameríndio “é o contrário da nossa visão da natureza como objetiva, regular e sem uma personalidade, porque a gente já sabe como acontecem os processos fisiológicos, químicos. Isso tem tanta precisão a partir do nosso olhar científico que a gente não vê personalidade, não vê identidade e, na perspectiva ameríndia, existe sim identidade”.

 

"É impossível encarar a crise climática com o mesmo pensamento que a administra. O futuro depende da nossa habilidade em transformar radicalmente como nossas espécies veem a si mesmas e o que é chamado de natureza. Para fazer isso, é necessário gerar não apenas outro conhecimento, mas outra estrutura de pensamento e até mesmo outra linguagem."

Vitor Blotta, docente do CJE e Thaís Brianezi, docente do Departamento de Comunicações e Artes (CCA)

 

Jornalismo e ativismo no centro da Amazônia

 

"Nessa luta pela decolonização de territórios e mentes, existe muito a aprender com aqueles então chamados de povos da floresta, que nos ensinam que a existência e a resistência são inseparáveis, e como sobreviver nos finais do mundo, ou adiá-los, contando outras histórias diversas, as quais questionam as representações, as centralidades e os universos (história única) dos povos de mercadoria."

Vitor Blotta, docente do CJE e Thaís Brianezi, docente do CCA

 

Desde 2017, a repórter e ativista Eliane Brum vive em Altamira, uma cidade no estado do Pará, para cobrir os impactos socioambientais da construção da hidrelétrica de Belo Monte e as dificuldades dos povos da mata. Para ela, a cidade é o epicentro do desmatamento ilegal e da resistência ao desmatamento, e seus esforços para denunciar os problemas da região culminaram na criação de uma agência de notícias que trabalha não apenas para o bem da floresta, mas junto com a floresta e suas comunidades, a Sumaúma

 

Foto de mulher indígena, de cabelos lisos, curtos e escuros, sobre os galhos de uma árvore, com o rosto voltado para trás. Ela usa uma vestimenta vermelha e rosa da cintura para cima, e uma saia vermelha e azul. Sobreposto à imagem da mulher, há um desenho de linhas brancas verticais, enquanto à esquerda e à direita dela, há desenhos de figuras humanas também em traços brancos.
Na matéria Por que os garimpeiros comem as vaginas das mulheres Yanomami? da Sumaúma, as fotos das mulheres se mesclam com desenhos feitos por elas que aludem à presença dos brancos nas áreas indígenas. Foto: Pablo Albarenga, desenhos: Mulheres Yanomami/Sumaúma.

 

O primeiro artigo publicado pela agência denuncia o estupro das mulheres Yanomami por garimpeiros operando ilegalmente em seus territórios. Na matéria, designada por Eliane Brum como uma "complexa operação de jornalismo em território de guerra", as mulheres foram deslocadas de sua tribo para prestarem seus depoimentos em um local onde não pudessem ser identificadas ou coagidas pelos criminosos. Em outra reportagem icônica da agência, as repórteres falam sobre o aumento da mortalidade de crianças indígenas por causas evitáveis durante o governo Bolsonaro, o que envolveu um cuidado especial para não invadir a privacidade dos envolvidos — mantendo a relação de confiança e não hierarquia que os pesquisadores defendem — ao mesmo tempo em que não os desumanizam citando apenas dados. 

 

"A cobertura de Sumaúma ajuda a entender a grandeza e a complexidade de uma Amazônia que é plural e não é compatível com as simplificações grotescas e generalizações oportunistas."

Vitor Blotta, docente do CJE e Thaís Brianezi, docente do CCA. 

 

Além disso, a Sumaúma é responsável por um programa de co-treinamento com jovens indígenas e periféricos de Altamira, o Micélio. O projeto é de “co-treinamento”, dizem os autores, porque ao mesmo tempo em que é ensinado aos jovens o rigor do trabalho jornalístico, eles também aprendem como contar histórias na perspectiva e a partir da cultura dos jovens. O Micélio pode ser considerado uma experiência educomunicativa porque está alinhada com essa perspectiva dialógica do “fazer com, não fazer para”. Nessa perspectiva, também pode ser entendido como um exercício do direito à comunicação, que promove aprendizados individuais e coletivos, favorecendo a participação e ampliando a democracia.

 

Ilustração de uma formiga cinza, que tem um pequeno macaco laranja sobre a cabeça. Acima de ambos está um ser formado por uma forma oval amarela com uma espiral no centro e duas hastes na frente, com um balão com os dizeres: “a morte é apenas uma mudança deliciosa”. Na parte de baixo, há um cogumelo vermelho e plantas pretas. O fundo é amarelo e preto.
Abordar histórias da perspectiva dos animais seria uma forma de superar a divisão entre humano e natureza decorrente da lógica instrumental, de acordo com os autores. Imagem: reprodução/ Sumaúma.

 

Por fim, o jornalista britânico Jonathan Watts, marido de Eliane Brum e co-fundador da Sumaúma, é também um dos responsáveis pela série em quadrinhos Guariba, publicada pela agência, cujo protagonista é um macaco, vítima das queimadas nas florestas, que perdeu sua memória e, em busca de casa, gradualmente revela uma visão não humana sobre a história da Amazônia. Nessa série, Sumaúma apresenta uma voz e uma perspectiva de animais não-humanos, tradicionalmente não ouvidos pelo jornalismo. Trata-se de uma tentativa de expandir a comunicação ou propor uma comunicação menos centralizada. 

 

 

Uma comunicação sem a qual não se pode falar em direitos humanos

 

"Nosso segundo caso de estudo é num projeto educacional de direitos humanos nas escolas como um exemplo de como a comunicação pode ser vista como um ser intersubjetivo com qualidades espirituais, e uma dignidade por si só que deveria ser protegida, cuidada, e buscada."

Vitor Blotta, docente do CJE e Thaís Brianezi, docente do CCA.

 

Outro exemplo de comunicação não hierárquica é o Projeto Observatório de Direitos Humanos nas Escolas (PODHE), uma intervenção e iniciativa de pesquisa do Núcleo de  Estudos da violência e da ECA USP. O Projeto trabalha semanalmente com alunos da rede pública e professores do ensino fundamental e médio através de workshops colaborativos dentro de aulas regulares, em um cronograma que vai da sensibilização dos problemas ligados aos direitos humanos até atividades de monitoramento de direitos humanos em escolas e iniciativas para transformar espaços escolares.

Foto de grupo de cerca de vinte estudantes de pé sobre um gramado. Do lado direito, há um homem branco careca de camiseta roxa e calça azul. No fundo, há prédios, árvores e carros estacionados.
Atividades coletivas e ao ar livre são o ponto de partida para as discussões sobre direitos humanos no projeto. Foto: Reprodução/Núcleo de Estudos da Violência.

“A educação de direitos humanos é uma abordagem para educação inspirada por práticas educacionais populares e informais”, diz Vitor, “que visa emancipar o sujeito, de forma que ele se sinta capacitado, empoderado, pertencente ao espaço escolar e apto para reivindicar direitos e resolver conflitos, sempre dentro de um ambiente democrático”. 

Em uma das atividades desenvolvidas no projeto, os próprios estudantes guiam os demais por lugares que eles gostam na região, e nesse “passeio”, as questões sobre direitos humanos surgem espontaneamente, e são discutidas sem a intenção de “dar uma aula”, ouvindo a opinião de todos e criando laços entre estudantes educadores e outros membros da escola. 

Esse tipo de laço ajuda também na hora de resolver conflitos entre os estudantes. Em outra atividade do projeto, contam Vitor e Thaís, foi convidado um coletivo de jovens feministas para jogar um jogo de cartas com os veteranos do ensino médio. Um estudante homem da classe interrompeu a explicação do jogo e uma membra do coletivo falou pra ele ficar quieto, alegando que as mulheres deveriam ser as primeiras a serem ouvidas. Isso não foi bem recebido pelos estudantes homens na aula, que começaram a questionar a atividade e todo o projeto. O desentendimento teve fim  depois de uma longa e disputada roda de diálogo na qual foi restaurada uma comunicação rompida, em um processo de aprendizado e compreensão mútuos

 

"Nessa ocasião, recuperamos nossa relação de longa duração. Afirmamos nosso desejo de continuar trabalhando juntos, mesmo que nossas concepções e experiências de direitos humanos fossem diferentes e às vezes divergentes."

Vitor Blotta, docente do CJE e Thaís Brianezi, docente do CCA.

 

 

Comunicação, direitos humanos e meio ambiente criando novas formas de ver o mundo 
 

 

"A espiritualidade é única, a nossa personalidade é única, nós somos um. E a natureza é diversa, então por isso ela também tem as suas características, tem as suas necessidades, tem o seu jeito de se expressar, e a gente tem que conseguir ouvir."

Vitor Blotta, docente do CJE

 

Para Vitor e Thaís, tanto a comunicação quanto a natureza são seres viventes, com vontade, personalidade e demandas próprias, e não um mero instrumento para o progresso humano. Mais do que uma simples romantização do pensamento ameríndio, essa postura sugere um contato com esses seres que não crie relações de separação ou de hierarquia, que justificaram séculos de exploração humana e natural. Para os autores, comunicações decoloniais, ou “xamânicas”, são necessárias para questionar a razão instrumental e colocar a vida, e não o progresso, como centro da existência humana.

 

Foto de mulher indígena grávida de pé sobre uma pedra. Ao redor de onde ela está, há, sobreposto a imagem, um desenho em branco que retrata uma criança brincando em uma praça, com a floresta ao fundo. O fundo é verde escuro.
Para os autores, a Sumaúma é um exemplo de como a comunicação jornalística pode ser feita não apenas sobre a floresta, mas em conjunto com a floresta e seus habitantes. Foto: Pablo Albarenga, desenhos: Mulheres Yanomami/Sumaúma.

 

É disso que se trata o “jornalismo no centro do mundo” da Sumaúma, que coloca a floresta amazônica, um dos centros do mundo natural, como o ponto de partida de uma nova forma de se comunicar sobre a natureza. Em suas matérias e em seu projeto de co-treinamento, o respeito aos povos locais é colocado acima de simplesmente divulgar dados e informações, criando uma comunicação onde não há distinções entre os jornalistas e a floresta ou seus povos.

O Projeto Observatório de Direitos Humanos nas Escolas dá prioridade para criação de comunicações não hierárquicas e democráticas, nas quais os jovens se sintam capacitados a aprender junto com os pesquisadores, questioná-los e ter as suas opiniões respeitadas. Para Vitor, “é impossível falar em direitos humanos nas escolas sem criar uma forma de comunicação democrática”.

 

"Comunicação afável, disposta a um aprender com o outro, é fundamental para se falar em direitos humanos e um bem público da educação."

Vitor Blotta, docente do CJE



 


Foto de capa: Pablo Albarenga, desenhos: Mulheres Yanomami/Sumaúma.