CCA | Departamento de Comunicações e Artes



"Há uma dificuldade estrutural de lidar com a liberdade de imprensa no Brasil"

Daniela Osvald, professora da ECA, fala sobre grupo de trabalho que irá coordenar no Ministério das Mulheres

Comunidade

O Ministério das Mulheres ficará responsável por grupo de trabalho (GT) de gênero do Observatório da Violência Contra Jornalistas e Comunicadores Sociais, criado pelo Ministério da Justiça em fevereiro com o objetivo de prestar suporte a profissionais da comunicação que são vítimas de ataques e agressões. O GT irá se dedicar às diferentes formas de violência endereçadas às jornalistas mulheres.

O objetivo é desenvolver políticas de proteção às comunicadoras que são vítimas de violência, por meio da centralização de denúncias e de apoio jurídico. Além disso, está prevista a criação de materiais educativos sobre a misoginia contra jornalistas e a elaboração de um relatório que divulgue dados e resultados obtidos pelo GT durante o seu período de atuação.

Foto da professora Daniela Osvald. Na imagem, a professora está olhando para a câmera sorrindo. Ela é branca e tem cabelo liso escuro na raiz e claro nas pontas. Ela usa óculos de grau com armação preta e uma blusa de manga comprida preta com detalhes em banco e preto. A imagem tem um fundo branco.
Daniela Osvald, professora da ECA, coordenará o GT de Gênero no Observatório da Violência Contra Jornalistas e Comunicadores Sociais. Imagem: Acervo pessoal

À frente do GT, como coordenadoras, estarão a jornalista e assessora especial de comunicação do Ministério das Mulheres, Dandara Lima, e a pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP e professora do Departamento de Comunicações e Artes (CCA) da  ECA, Daniela Osvald Ramos.

Além das coordenadoras, o  GT é formado por um conselho com a seguinte composição:

  • Bárbara Libório, da revista AzMina; 
  • Bia Barbosa, do Repórteres Sem Fronteiras;
  • Samira de Castro, da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ);
  • Ramênia Vieira, do coletivo Intervozes; 
  • Renata Cafardo, da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca); 
  • Patrícia Blanco, do Instituto Palavra Aberta; 
  • Taís Gasparino, da associação TornaVoz; 
  • Mara Fortes, da Asssociação de Jornalismo Digital (AJOR); 
  • Katia Brembatti, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI); 
  • Mara Tarjan, da organização Artigo19;  
  • Beth Saad, professora sênior do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da ECA. 

Em entrevista ao Laboratório Agência de Comunicação (LAC) da ECA, a professora Daniela Osvald deu mais detalhes sobre o grupo de trabalho e o panorama atual da violência contra mulheres comunicadoras no Brasil.

 

Como e por quê você passou a se dedicar ao tema da violência contra jornalistas?

Eu fiz Jornalismo de 1993 a 1997, no final do século 20. Era um período bastante diferente em várias esferas. Depois, vim a São Paulo para trabalhar na Editora Abril e fazer mestrado e doutorado. Comecei a dar aulas sobre jornalismo digital e entrei na USP em 2013. Foi em 2015 que eu conheci o Núcleo de Estudos da Violência. Lá trabalhei por um período com divulgação científica e passei a me interessar por questões relacionadas à violência e à comunicação. Em 2017, comecei a formular o meu estudo sobre violência digital. Logo depois, a gente teve uma mudança de governo e a explosão de uma violência estruturada, quando passou a ser incorporado na rotina de figuras políticas atacar sistematicamente jornalistas, principalmente, as jornalistas mulheres. Foi quando esse objeto se impôs, digamos, como pesquisa desta área em que eu já estava e que envolve jornalismo, violência e comunicação.

 

"A partir de 2018 passa a ser incorporado na rotina de figuras políticas atacar sistematicamente jornalistas, principalmente, as jornalistas mulheres."

 

Daniela Osvald, professora e pesquisadora da ECA

 

No último ano, o Brasil subiu 18 posições em um ranking mundial da violência contra jornalistas realizado pela organização Repórteres Sem Fronteiras. Esse fato é muito associado ao fim do governo Bolsonaro. Como você avalia a violência contra jornalistas antes e durante esse governo? 

A violência contra jornalistas sempre existiu no Brasil, mas eram casos mais isolados e longe dos grandes centros. Nunca foi resolvida essa tradição de atacar o mensageiro. O professor Paulo Sérgio Pinheiro, que foi um dos fundadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP, fala em autoritarismo socialmente implantado no Brasil e a gente vê isso em relação aos comunicadores. Esse autoritarismo socialmente implantado aparece quando se ataca verbalmente jornalistas e, no caso extremo, quando eles são assassinados. Isso acontece, infelizmente. 

São vários casos, cada um com suas especificidades.  Há violência, ataques verbais e não verbais diretos a jornalistas e comunicadores no Brasil desde sempre. E tem os seus picos. Teve um pico na ditadura militar, por exemplo, mais visível. Depois dessa época, sumiu um pouco do radar, mas continuou existindo. É como se o poder no Brasil – o poder político, econômico e financeiro – não soubesse lidar com escrutínio público dos seus atos: ele não consegue entender que todas as suas ações estão sujeitas a ser investigadas e isso se tornar público. Veja pela própria função do jornalismo, que é apurar e investigar continuamente como está se dando o poder em relação ao cidadão e à sociedade nas esferas local, regional ou nacional. E daí a gente vai acompanhando. A Federação Nacional de Jornalistas, a Fenaj, publica um relatório sobre a violência contra os jornalistas e comunicadores e a primeira notícia que a gente tem [de violência contra jornalistas] é do ano de 1982. Desse ano para cá, os casos de violência continuam acontecendo, às vezes mais graves e às vezes menos graves, o que  revela que há uma dificuldade estrutural de lidar com a liberdade de imprensa no Brasil. 

Não se entende, por exemplo, que quando o dinheiro do empresariado se utiliza de um mecanismo público ou afeta um grande número de pessoas de algum modo, isso será questionado, será investigado, será trazido para a opinião pública pelo jornalismo, por meio da apuração, da investigação, da reunião de várias bases de dados, de entrevistas com pessoas etc. E quando isso esbarra em um poder hegemônico ou vai contra os interesses desse poder, o jornalismo não é bem-vindo. Isso causa um conflito que pode adquirir formatos extremos. 

Outra questão que é anterior ao governo Bolsonaro é a falta de punição a agressores de comunicadores e jornalistas. Há casos que não são investigados, não geram qualquer inquérito e ficam sem resolução. Ou seja, é um crime barato porque a impunidade é quase garantida. E é isso que a gente propõe mudar.

 

"É como se o poder no Brasil – o poder político, econômico e financeiro – não soubesse lidar com escrutínio público dos seus atos: ele não consegue entender que todas as suas ações estão sujeitas a ser investigadas e isso se tornar público."

 

Daniela Osvald, professora e pesquisadora da ECA


 

Cartaz de divulgação do GT de Gênero no  Observatório da Violência Contra Jornalistas e Comunicadores Sociais. A imagem é uma arte que mistura a imagem de mulheres não identificadas com folhas de jornais. Na parte central, em lilás e preto, lê-se "Cala boca já morreu". Logo abaixo, em um box lilás, lê-se "Ministério das Mulheres vai coordenar GT de Gênero no  Observatório da Violência Contra Jornalistas e Comunicadores Sociais a convite do MJSP". No canto inferior direito da imagem estão as logos do governo federal, do Ministério das Mulheres e do MJSP.
Pelo Instagram, o Ministério das Mulheres divulgou a coordenação do GT de Gênero. Imagem: Instagram/@min.dasmulheres

Falando um pouco mais sobre o GT, como foi o convite para coordená-lo?

Em 2021, eu e a professora Beth Saad demos um curso online na pós-graduação sobre violência contra jornalistas. A Dandara Lima, na época mestranda na UnB, fez o nosso curso. No ano seguinte, eu participei da banca de qualificação de mestrado dela. Atualmente, ela está trabalhando no Ministério das Mulheres como assessora de comunicação digital. 

No dia 15 de janeiro, o ministro Flávio Dino anunciou a criação do Observatório de Violência contra Jornalistas, na esteira do que aconteceu no dia 8 de janeiro, quando houve a depredação do Congresso e dos Três Poderes e vários jornalistas foram agredidos fisicamente ou impedidos de continuar o seu trabalho, sendo ameaçados. Foi um caso muito visível e muito gritante, que faz parte dessa campanha contínua que aconteceu nos últimos quatro anos contra jornalistas. Isso porque, se você desqualifica publicamente [os jornalistas], provoca um efeito de imitação do grande público, que passa a desconfiar e, no limite, a hostilizar esses profissionais, sem perceber que isso atenta contra a democracia e contra a liberdade de imprensa e de expressão. 

Quando foi publicada a notícia [de criação do Observatório], eu entrei em contato com o secretário do Ministério da Justiça, Augusto de Arruda Botelho, para, como alguém da academia, participar das reuniões, junto com várias entidades e atores públicos. Foi quando a Dandara Lima foi convidada a trabalhar no Ministério das Mulheres e me convidou para coordenar o GT junto com ela, por conta dessa nossa história pregressa, do curso e da banca de qualificação. Então, esse GT tem uma interface muito grande com o Ministério das Mulheres.
 

Qual é a função desse GT?

São dois objetivos centrais: o primeiro é tomar conhecimento de casos de mulheres jornalistas que são perseguidas e ameaçadas e que não estão em grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, mas sim em regiões mais afastadas, trabalhando muitas vezes com temas sensíveis, geralmente ligados aos direitos humanos, à política, ao meio ambiente etc. Queremos estimular relatos de mulheres jornalistas do Brasil inteiro,  que não estão sendo ouvidas ou que estão invisibilizadas por essa violência específica. Num segundo momento, o objetivo é produzir um material de conscientização relativo a essa situação estrutural de misoginia que o país vive. Queremos criar campanhas de conscientização sobre o que são atos misóginos, mais especificamente, em relação a mulheres jornalistas e comunicadoras.

 

Qual a periodicidade das reuniões?

As reuniões são mensais e, quando for publicado no Diário Oficial e tivermos as componentes oficializadas, serão provavelmente quinzenais. Mas até agora estão sendo mensais.

 

Por quanto tempo vão ser realizados os trabalhos do grupo?

Não tenho essa previsão, mas eu acredito que, no mínimo, por dois anos.

 

Já existem outras ações do Governo Federal para proteção de mulheres jornalistas?

Especificamente [com esse recorte de gênero] não.

 

Diversas instituições que representam jornalistas, como a Abraji e a Fenaj, realizam relatórios mapeando a violência contra esses profissionais, inclusive com recorte de gênero. Ainda assim, muitos desses dados acabam se desencontrando, o que dificulta a criação de um panorama que se aproxime da realidade dos ataques contra mulheres jornalistas no Brasil. Como o GT pretende lidar com isso? Há alguma proposta para centralizar denúncias no caso dessas violências e, consequentemente, conseguir números mais concretos?

Sim, o Observatório quer centralizar as denúncias para que elas virem boletins de ocorrência e se tornem inquérito. São denúncias consideradas graves e que precisam de um acompanhamento jurídico específico para que o perpetuador da violência seja processado e sofra as devidas sanções. 

 

Entre os impactos da violência online contra jornalistas, um dos principais diz respeito à saúde mental. Existe alguma previsão de discussão no GT de possíveis formas de auxílio psicológico às vítimas?

Por enquanto não. As duas preocupações centrais, no momento, são receber as denúncias que são invisibilizadas e produzir o material de conscientização. Mas eu acredito que nesse material a gente vai tratar dos efeitos desses ataques contínuos sob a saúde mental. As pessoas não têm ideia de como a saúde mental é afetada depois que uma pessoa vira alvo nas redes sociais. É uma questão da qual as plataformas precisam estar cada vez mais cientes e a população também, então, sim, eu acho que isso vai ser endereçado durante a campanha de conscientização.

 

Em 2021, a Unesco publicou uma pesquisa sobre a violência contra jornalistas mulheres, em que 73% das entrevistadas afirmaram ter sofrido violência online durante o trabalho. Como rastrear esse tipo de violência? Quais medidas devem ser tomadas a esse respeito?

Montagem de fotos das jornalistas Vera Magalhães e Patrícia Campos Mello. À esquerda, está Vera Magalhães. Ela é uma mulher branca, com cabelo curto castanho. Vera está olhando para a câmera e sorrindo. Ela usa uma camisa azul claro. À direita, está Patrícia Campos Mello. Ela é uma mulher branca, com cabelo castanho claro e comprido. Na foto, Patrícia fala segurando um microfone. Ela está usando uma blusa estilo regata preta, um colar dourado e pulseiras coloridas.
Vera Magalhães e Patrícia Campos Mello são exemplos de jornalistas que tem sido alvo de ataques. Imagem: Wikimedia Commons e Agência Brasil

Primeiramente, a questão da violência digital perpassa a discussão sobre a regulamentação das plataformas, o que é muito importante, porque as plataformas precisam se posicionar sobre isso. Se a misoginia for um modelo de negócio lucrativo para as plataformas, a gente precisa chamar isso pelo nome e cobrar para que a violência contra mulheres comunicadoras e mulheres de relevância na opinião pública nas grandes plataformas seja punida. Para que elas não sejam agredidas por serem quem elas são. Isso precisa ser regulamentado e ter mecanismos de controle, pois está afetando a saúde psicológica e o corpo dessas mulheres. E o argumento "é só sair da internet" apenas nega para a mulher um espaço ao qual ela tem direito. Ou seja, é uma dupla violência. Ela sofre a violência dos ataques e também a violência de ter que sair daquele espaço por conta disso. É necessária a conscientização e o entendimento das plataformas em relação a isso, com a criação de um conjunto de políticas para que essas ameaças não ocorram de uma forma tão livre como é hoje, em que a violência se confunde com liberdade de expressão. Liberdade de expressão não é liberdade de ataque contínuo e sistemático ao outro.

Outra coisa importante de falar é que nas próprias redações as mulheres sempre tiveram que lidar com essa dimensão da violência. Só que hoje, isso extrapola a própria redação e entra no espaço público geral. Os ataques sistemáticos a jornalistas como Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães são a ponta do iceberg. Pela visibilidade que ocupam, essas mulheres acabam se tornando alvos muito claros. Isso revela o quão rápido a opinião pública adere a essa forma de ataque às jornalistas.  

A mulher sempre vai ser um alvo preferencial em várias instâncias, porque ela é mais fácil e frágil no que se refere a sua legitimidade no espaço público. A legitimidade da mulher no espaço público não é algo garantido e consolidado no Brasil. Não são ainda direitos adquiridos, então a gente precisa continuar a lutar por isso.

 

 “A legitimidade da mulher no espaço público não é algo garantido e consolidado no Brasil”

 

Daniela Osvald, professora e pesquisadora da ECA

 

A mesma pesquisa da Unesco identificou que os tópicos mais sensíveis para desencadear abusos online foram justamente as questões de gênero e a política. Como você avalia este dado? Por que essas temáticas são tão sensíveis?

Porque quebra a visão masculina hegemônica.  Quando a mulher jornalista tem relevância em um espaço público, ela oferece diversidade, adicionando uma outra camada sobre temas já complexos, que é a camada de interpretação dos fenômenos sociais e políticos em relação à especificidade de gênero. As mulheres jornalistas são alvo por falar de gênero porque há um poder hegemônico ao qual não interessa a diversidade, não interessa o olhar diverso. Por isso, todas as diversidades que a gente pode imaginar vão ser alvos preferenciais. 

No caso da política, esse espaço é visto como “lugar de homem”. Como um lugar de poder dos homens sobre o qual as mulheres não entenderiam ou não conseguiriam lidar por não terem capacidade nem competência. A mulher jornalista que cobre política, para ser respeitada, precisa se impor de uma maneira muito mais constante e específica do que os homens jornalistas, por exemplo.  E isso já existia antes do governo Bolsonaro. O que o governo Bolsonaro fez foi explicitar isso no discurso, com uma linguagem de ataque.

 

Na sua opinião, qual o papel das empresas que contratam essas profissionais no enfrentamento à violência?

Em primeiro lugar, eu acho que as empresas precisam desenvolver um olhar específico em relação à segurança das suas profissionais. É preciso um treinamento de segurança digital, sobre como proteger os seus dados, as suas redes, a comunicação em rede.  E, num segundo momento, proteger a segurança física e jurídica, com advogados que possam dar suporte para a empresa e à jornalista. Isso se a mulher tiver um contrato e uma empresa por trás, porque, muitas vezes, é uma jornalista independente, que depende de associações como a Associação Nacional de Jornalistas ou de entidades como a Abraji,  que estão se mobilizando para oferecer um serviço jurídico gratuito a profissionais que estão sob assédio judicial. 

Além disso, essa cultura misógina está concentrada no ambiente de trabalho. A gente vê muito nos estudos e também escuta relatos de como, historicamente, nas redações, as jornalistas mulheres são discriminadas por frases como "isso não é pauta de mulher". 

 

Quais os maiores desafios encontrados atualmente na garantia da proteção e segurança de jornalistas mulheres no Brasil?

Eu acho que é um trabalho bastante profundo e importante, porque tem a ver com entendimentos estruturais da sociedade brasileira em relação à ocupação da mulher nos espaços públicos. Veja, até 2016, não existia banheiro para as mulheres que trabalham no Senado. É algo super recente justamente porque há esse estranhamento do corpo feminino num lugar público de poder. Isso é uma misoginia estrutural. Por isso, para termos políticas públicas específicas para as jornalistas mulheres, precisamos endereçar essa questão da misoginia estrutural e trabalhar no sentido de criar conscientização sobre essas práticas, para que elas sejam transformadas e para que se entenda o direito da mulher de ocupar esse espaço na vida pública.


 

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