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“Tenho a certeza que eu não posso errar”: o slam e a escrevivência negra

Artigo da revista Anagrama analisa o uso das poesias como maneira de trazer visibilidade às narrativas de mulheres negras

 

 

Vida acadêmica

Com o microfone na mão e as palavras na ponta da língua, artistas declamam suas histórias em forma de poesia e aguardam a nota dos jurados nas periferias do país. Durante três minutos, as poetisas e poetas contam em rimas suas vivências pessoais e tecem críticas sobre seu papel na sociedade.  

Esse é o cenário do slam, uma competição de poesia que surgiu em um bairro de trabalhadores em Chicago, nos Estados Unidos, na década de 80. O slam foi trazido ao Brasil em 2008 pela atriz, MC, diretora e slammer Roberta Estrela D’Alva e continuou ganhando vida no mesmo lugar no qual foi criado: a periferia. Segundo o Slam Br, um campeonato brasileiro de poesia falada, o Brasil hoje conta com 210 grupos de slams espalhados pelo território. A competição busca amplificar vozes de poetas de diferentes origens, que apresentam seus textos sem auxílio de música ou figurino, somente voz e interpretação.

Tudo isso está descrito no artigo "Revolta da caneta": as escrevivências de mulheres afro-brasileiras através da poesia do slam no Campeonato Paulista de Poesia Falada de 2022, de Laura Ferreira de Abreu, pós-graduanda no PPGCOM, e Vinicius Romanini, docente do Departamento de Comunicações e Artes (CCA).  O artigo, que integra a mais recente edição da Revista Anagrama, buscou analisar o conteúdo dos textos declamados na final do campeonato paulista de slam em 2022.

Apesar dos slams serem de tema livre, os textos geralmente se voltam para experiências pessoais dos competidores e críticas sociais. “O  slam pode ser entendido não apenas como uma expressão artística, mas um espaço para descolonizar a fala e para manifestar narrativas que não possuem liberdade de circular em outros espaços culturais e hegemônicos”, afirmam  os autores.

Na fotografia, uma mulher negra de cabelos crespos e grisalhos. Ela segura um microfone, usa blusa branca florida e brincos em formato de gotas, também brancos.
Conceição Evaristo.
Imagem: Flickr/Cultura de Red 

Na fase final do campeonato havia cinco mulheres negras do total de seis finalistas: Matriarcak, do Slam do Verso, que foi a campeã da competição e se tornou bicampeã estadual; Apêagá, do Slam do Bronx; Tawane Theodoro,  do  Slam  do  13zinho;  Vickvi,  do  Slam  Bzola;  e  Tairini,  do Slam Independente.  O artigo se preocupa em entender como as vivências dessas mulheres são contadas nas suas poesias. Para isso se utiliza do conceito de “escrevivências”. 

Por meio desse neologismo, criado pela escritora Conceição Evaristo a partir das palavras “escrever” e “vivências”, os autores do artigo analisam as letras declamadas por essas cinco mulheres negras durante a final estadual. “A premissa deste conceito é aquela já trazida anteriormente: as escritas dos indivíduos negros são carregadas  pelas vivências impostas  a  eles  por  meio  do  cenário  de  discriminação  e racismo estrutural”, dizem Laura e Vinicius. 

 

O que dizem as mulheres negras do slam?

Dentre todos os aspectos analisados nos textos da competição, um dos mais importantes é que as escrevivências estão sempre presentes entre as linhas. As experiências das competidoras, transformadas em poesia, trazem consigo marcas muito particulares de ser uma mulher negra, mesmo quando o “ser mulher negra” não é a temática principal. 

Os autores chamam a atenção para o fato de que o corpo da mulher negra é um corpo político por si só e como isso desencadeia uma das temáticas comuns nos textos: o estereótipo da mulher negra como forte e agressiva,  “o  que  desumaniza  e produz  sequelas  mentais  nestes  indivíduos”, afirmam.
 

 

somos da nova geração
da luta
a salvação de todo o pessoal
mas nunca individual
me empurraram o estereótipo de forte
e eu não consegui recuar
hoje eu só tenho a certeza que eu não posso errar
é que eu sou pesada demais
e tá foda de me aguentar
o quanto a militância já te salvou
mas o quanto ela já te abalou
e isso cansa

Tawane Theodoro, poeta

 

A imposição desses adjetivos à mulher negra é uma maneira de tentar impedi-la de ocupar outros espaços e resumi-la àquilo que a discriminação diz que seu corpo tem a oferecer: força e sexualidade. Além disso,  “pressupor  que  a  mulher  negra  é um indivíduo  forte  é  violento  e  uma  forma  de justificar  todas  as  violências  que  elas  passam”, comentam os pesquisadores.

Laura e Vinícius observam também a interseccionalidade que aparece de forma latente nos relatos. Existe uma impossibilidade de dissociar raça, gênero e classe quando o assunto é a mulher negra. Os textos das poesias analisadas confirmam essa hipótese ao carregarem marcas raciais mesmo quando o assunto principal é a violência de gênero, por exemplo.

 

você diz que eu sou gostosa
mas não quer se envolver comigo
não, na verdade você até se envolve
mas nunca apresentou para os amigos

Matriarcak, poeta

 

Na fotografia em preto e branco, uma mulher negra com cabelos crespos acima do ombro. Ela usa brincos grandes em formato de argolas, um colar com vários elos  e outro colar com um pingente redondo. Ela usa blusa de botões semi-aberta e olha para a direita. Ao fundo, luzes desfocadas.
Vencedora da edição, a poeta Matriarcak se tornou bicampeã estadual.
Imagem: Reprodução/Slam Digital.

A participação no slam e a tradução das experiências em versos e poesia são maneiras de colocar essas mulheres em pauta e mostrar uma narrativa diferente do que normalmente se vê nos espaços culturais. Os versos também servem para que elas possam expressar suas lutas, pensamentos sobre o mundo em que vivem e a auto identificação — que também está presente nas rimas.

 

passei por quatro anos de transição
quatro anos de humilhação e zero aceitação
pra hoje em dia branco vir falar
que eu to usando black porque tá na moda
há 10 anos atrás cê falou que era feio
há quatro anos mandou eu alisar meu cabelo 
[...]

VickVi, poeta

 

O slam se mostra um lugar de diversidade e possibilidade de trazer ao microfone histórias que muitas vezes são impedidas de serem contadas. O público ouve as rimas e descobre por meio delas a luta de cada uma das artistas.

 

“O slam como um produto cultural, ou melhor, como expressão artística, se converte em um espaço de escuta, acolhimento e compartilhamento de vivências que precisam ser ouvidas pelo público. São escritas não só de desabafo social, mas também de denúncia sobre as opressões sistêmicas que estas mulheres sofrem.”

Laura Ferreira de Abreu e Vinicius Romanini, pesquisadora do PPGCOM e professor do CCA

 

Revista Anagrama

A Revista Anagrama, chefiada pela professora titular do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da ECA Mayra Rodrigues Gomes, tem periodicidade semestral e é feita pelo grupo de pesquisa Midiato, que realiza estudos de linguagem e práticas midiáticas. A revista tem “foco nas mídias e na comunicação social a partir de uma ótica interdisciplinar” e recebe artigos de vários cantos do país.

 

Na imagem, o logo da revista Anagrama. A palavra “Anagrama” está em preto e as letras “A” do início e final estão em vermelho e grafadas em orientação contrária da usual, como se estivessem espelhadas.  A palavra “revista” é formada por letras em tamanho menor nos espaços entre as letras da palavra “anagrama”, e sobre ela há um grifo amarelo.
Imagem: Reprodução/Revista Anagrama

 

A edição da Revista Anagrama do segundo semestre de 2023 contém diversos artigos relacionados à mídia e à comunicação.  Outros dois textos são de autoria ecana. O artigo Resgate de Identidades: expressões da Negritude na Comunicação Política, de Thiago Lima Freire, graduando em Relações Públicas na ECA, também aborda a expressão da negritude. Já o artigo Jennifer’s Body: a indústria cinematográfica do terror a representação da mulher, de Júlia Loureiro Privatti, também graduanda em Relações Públicas na ECA, se preocupa em analisar a representação das mulheres em filmes do gênero terror.

Você pode conferir a íntegra da revista no Portal de Revistas da USP.

 

 

 


Imagem de capa: Montagem de fotos. Reprodução: Sérgio Silva/ Slam SP