Sem regulamentação, sociedade estará mais fragilizada diante do poder das plataformas

Pesquisadores da ECA defendem a regulação das plataformas digitais, atualmente em discussão no Congresso Nacional com o PL das Fake News

Comunidade

O Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, também conhecido como PL das Fake News, vem para instituir a “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”, que deve regulamentar as atividades de plataformas digitais, como as redes sociais, aplicativos para troca de mensagens e sites de busca. Para Renata Mielli, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM), e para Francisco Cruz, doutor em Direito e diretor do centro de pesquisa InternetLab, escolher não regular já é regular e o PL tem papel fundamental para qualificar a moderação de conteúdo, responsabilização das plataformas e proteção de direitos dos usuários.

Essas empresas, apesar de estarem entre os maiores conglomerados econômicos do mundo, não são obrigadas a prestar contas sobre suas ações e potenciais impactos, de acordo com a pesquisadora. E por quê isso acontece? Para Roseli Figaro, professora do Departamento de Comunicações e Artes (CCA) e do PPGCOM, estamos diante de um modelo inédito de capitalismo, o que torna essencial a criação da lei e de um órgão regulador para fiscalização das plataformas digitais

 

PL em debate na ECA

Renata Mielli, Francisco Cruz e Roseli Figaro participaram na ECA do seminário Regulação de plataformas no Brasil: PL 2.630/2020 em contexto. O evento foi realizado no dia 15 de maio no Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE). A iniciativa foi uma parceria entre os grupos de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade e Comunicação e Trabalho, o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) e o Instituto Vero. Assista ao debate na íntegra no canal do CJE no Youtube.

Nos dias 21 e 22 de junho, a ECA recebe o I Workshop da Área de Comunicação e Informação sobre Regulação de Plataformas Digitais, evento conjunto da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), do PPGCOM, da Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD) e do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). O workshop terá transmissão ao vivo pelo canal da ECA no YouTube.

 

Primeira iniciativa de regulamentação: o Marco Civil da Internet

Renata, que também é coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), conta que, quando surge a internet, há um certo consenso de que essa novidade não deveria ser regulamentada — decisão que viria a ser muito importante para seu pleno desenvolvimento anos depois. Porém, na década de 1990, aparecem os primeiros usos comerciais da rede e, com eles, os debates internacionais sobre como regular a ferramenta. 

Foto de uma mulher falando. Ela é branca, tem olhos escuros e cabelos médios, lisos e castanhos. Ela veste uma blusa preta de manga longa. Renata está sentada em uma cadeira e apoia seus braços em uma mesa, onde também está posicionado um microfone. Um homem sentado ao lado dela aparece desfocado na imagem.
Renata Mielli pesquisa a ação dos algoritmos nas emoções dos usuários e como isso impacta a liberdade de expressão e as democracias. Imagem: Mariana Zancanelli/LAC

A partir dos anos 2010, explica a doutoranda, as empresas que atuavam desenvolvendo grandes plataformas — como Google (Alphabet), Amazon, Apple, Facebook (Meta) e, mais recentemente, aplicativos de mensagem — “foram se fortalecendo, e se transformaram nas maiores empresas da economia capitalista da atualidade”, o que motiva o Brasil a também refletir sobre a responsabilidade dessas poderosas organizações, as chamadas big techs.

É só com a Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, que são estabelecidos direitos e deveres para o uso da internet no país. Entre os princípios listados pela norma, estão a garantia da liberdade de expressão e a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, que voltam a ser colocados em pauta com o PL 2.630.

Francisco enfatiza que um dos pontos principais do Marco Civil é afirmar que as plataformas só podem ser responsabilizadas civilmente por danos gerados pelos conteúdos publicados por usuários se, depois de ordem judicial, elas não retirarem a publicação do ar. Ou seja, hoje, “apenas o Poder Judiciário pode reconhecer a ilegalidade de um conteúdo”. Esta é uma determinação que passa a ser repensada com o PL, assim como a moderação e a regulação de conteúdo, que não são citados na Lei de 2014.

 

Conteúdos públicos, curadoria privada: a questão da moderação

A moderação de conteúdo é o poder da plataforma em retirar ou manter determinadas postagens feitas por seus usuários. Para lidar com publicações que descumprem termos de uso e as “regras de comunidade”, por exemplo, as plataformas criam advertências, excluem posts, derrubam contas ou banem os usuários, explica o professor Vitor Blotta, do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE). Contudo, faltam informações sobre a qualidade dessa moderação: não se sabe se há discriminação de usuários distintos e nem o quanto são respeitados os direitos de defesa e informação. Isto é, falta o chamado “devido processo informacional”, segundo o docente. Nesse sentido, a proposta do PL é ter regras mínimas tanto para o processo quanto para dar transparência a essa moderação.

Foto de um celular com a tela quebrada. A aba de conversas de um aplicativo de mensagens está aberta. É possível ver o teclado na parte inferior da tela, e a parte superior, com a troca de mensagens, está desfocada. O aparelho está apoiado em uma superfície verde-claro.
Imagem: Hocklus/Pixabay

As recomendações de conteúdo feitas pela plataforma, por meio do feed, são a chave para cativar e reter a atenção do usuário e também são uma forma de moderação. Quanto mais uma pessoa curte, comenta ou compartilha um certo assunto na rede social, mais ela recebe sugestões de outras publicações sobre aquele tema. Com isso, ela deixa de ver postagens que tragam informações diferentes ou até visões contrárias a respeito deste assunto, o que leva à criação das famigeradas bolhas.

Para o diretor do InternetLab, isso provoca um processo de intermediação da cidadania. O serviço das plataformas, de acordo com o pesquisador, “está repleto de escolhas políticas sendo feitas por atores privados”, que devem ser tuteladas e, se forem incompatíveis com a democracia, cerceadas. 

Renata reforça que, apesar de ter surgido com a expectativa de democratização — no sentido de dar voz e acesso à informação para grupos historicamente silenciados pelos meios hegemônicos de comunicação — a internet, atualmente, é poderosa o suficiente para gerar interferências na vida política de vários países. As big techs passam a controlar a maioria de trocas simbólicas da sociedade conforme as plataformas se apropriam de diferentes áreas das nossas vidas, como a cultural, profissional, comercial e pessoal. Por isso, para a doutoranda, a regulação também se trata de soberania nacional.

Somado ao poder político, as plataformas também dispõem de enorme poder econômico. Segundo Renata, elas estão entre os maiores conglomerados empresariais do mundo, e ainda assim não prestam contas sobre seus impactos, o que é inadmissível. Assim como todo setor da economia, as big techs devem ser reguladas e seguir regras. A professora Roseli frisa que, com o surgimento das plataformas, inaugura-se um novo modelo de capitalismo, em que as informações são convertidas em mercadoria. Diante dessa novidade, é preciso refletir.

 

“Temos que entender que capitalismo é esse e que tipo de empresa é essa, que fazem [com que] todas as nossas leis pareçam absolutamente anacrônicas e que nos tornam completamente reféns desse quadro.”

 

Roseli Figaro, professora do CCA e do PPGCOM

 

Francisco compara as big techs a mineradoras para exemplificar a necessidade da regulação e prestação de contas. Segundo a legislação ambiental, as empresas que exploram a natureza precisam apresentar periodicamente uma análise sobre o possível impacto de suas ações, apontando os riscos para a água, o som, o ar e a comunidade daquela região, entre outros pontos. Da mesma forma, para o pesquisador, as plataformas deveriam ser obrigadas a listar quais seus potenciais efeitos para a sociedade, os direitos humanos e a liberdade de expressão, por exemplo.

Foto de uma janela quebrada, a imagem foi tirada do lado de dentro do Palácio do Planalto. Através do vidro trincado, é possível ver a rampa do Palácio, uma bandeira do Brasil hasteada, outros prédios, árvores e algumas pessoas.
Destruição do Palácio do Planalto após os atos antidemocráticos de 8 de janeiro. Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Diante dos possíveis riscos, caberia às big techs, então, começar a investir na identificação e na prevenção de conteúdos ilegais de forma sistêmica. Esse aspecto é bastante ressaltado por Renata, no sentido de que não se trata de lidar com casos pontuais, mas combater crimes, ilegalidades e propagação de desinformação, olhando para o funcionamento estrutural das empresas.

 

Lei e órgão regulador vão acabar com dependência do STF

A doutoranda reforça que, enquanto não houver uma lei que trate dessas temáticas, “vamos depender da discricionariedade do STF”. Ou seja, as decisões sobre esses casos continuarão sendo baseadas em escolhas dos ministros do Supremo Tribunal Federal dentro dos limites legais já existentes. O PL, portanto, traria segurança jurídica para a sociedade, para os usuários e para todo o ecossistema das plataformas, de acordo com Renata.

Foto de uma senhora falando. Ela é branca, seus olhos são escuros e seus cabelos são curtos, lisos e castanhos. Ela usa óculos e veste um cachecol vermelho com um casaco preto. Ela está sentada em uma cadeira azul e apoia seus braços em uma mesa, onde também está posicionado um microfone.
Roseli Figaro é presidente da Compós, a Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Imagem: Mariana Zancanelli/LAC

A regulação é essencial, e não há regulação sem que haja um órgão regulador. Sem um agente fiscalizador, “ficamos com um texto muito bonito, mas que não serve para nada”, afirma a professora Roseli. Para Francisco, há algumas características que esse  órgão deve ter para cumprir eficientemente seu papel. São elas:

  • Ser independente dos poderes político e econômico;
  • Ser participativo e ouvir diferentes setores;
  • Ter capacidade para lidar com temas de direitos humanos;
  • Ter expertise em moderação de conteúdo e assuntos da internet;
  • Ser um espaço de coordenação entre muitas pessoas.

Ainda não há consenso sobre qual entidade poderia assumir essa função. Já foram cotados o CGI.br, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) ou até mesmo a criação de um sistema regulatório proposto pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o que seria uma prerrogativa do Poder Executivo. Toda a incerteza sobre esse agente e a falta de detalhes sobre seu funcionamento dá margem a interpretações errôneas. Segundo Renata, a extrema direita e as próprias big techs exploram esse espaço de indefinição para fazer um “terrorismo midiático” contra o PL, dando o apelido de “Lei da Censura” e denunciando o suposto objetivo de criar um “Ministério da Verdade”.

 

Proposta combate conteúdos que ferem direitos individuais e coletivos

Falar em censura não é compatível com o que está na proposta do PL, segundo Francisco, porque o projeto não cria novas hipóteses de discurso ilegal no Brasil. Ou seja, “o que era ilegal se falar no Brasil vai continuar sendo, se for aprovado o PL ou não”. O que muda é uma estrutura de incentivos e obrigações que age sobre as big techs, que são intermediárias desses discursos, esclarece o pesquisador.

Foto de um homem falando. Ele é branco, tem olhos e cabelos escuros, usa barba e veste uma blusa cinza. Ele está sentado em uma cadeira vermelha e apoia seus braços em uma mesa, onde também está posicionado um microfone.
Francisco Cruz é fundador e coordenou o Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da USP. Imagem: Mariana Zancanelli/LAC

“Desde a redemocratização, as iniciativas de regulamentar os dispositivos da Constituição que tratam da comunicação social foram sempre tratados como mecanismos de censura”, explica Renata. Isso porque, os veículos de comunicação, assim como as big techs, são contra a regulação “em seu DNA”. Para essas empresas, as argumentações de que “regular é censurar” e de que “a liberdade de expressão está em risco” têm motivos políticos e econômicos, acrescenta a doutoranda da ECA.

Prova de que essas alegações não procedem é o artigo 4º do texto, que aponta a defesa da liberdade de expressão e o impedimento da censura no ambiente online como objetivo da lei. Francisco explica que é sim essencial dar espaço de fala para todos, porém, “em uma sociedade diversa, desigual e violenta como a nossa, [é preciso] entender como essa expressão pode ser de violência a determinados grupos”

O professor Vitor Blotta reforça que há previsões no PL que proíbem o poder público de patrocinar canais que circulam conteúdos discriminatórios — como discriminação racial, de gênero, etnia, religião, nacionalidade etc. — e crimes contra o Estado Democrático de Direito, a interrupção de processo eleitoral e a violência política. A desinformação e suas potenciais consequências também devem ser motivos de alerta.

Foto de um homem olhando para a câmera. Ele é branco, calvo, tem olhos escuros e usa barba. Ele veste uma camisa social branca e um blazer preto. Ao fundo, aparecem folhas de árvores.
Vitor Blotta é coordenador e um dos fundadores do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade. Imagem: Reprodução/NEV-USP

O problema jurídico se dá quando as inverdades causam danos a direitos individuais, coletivos ou mesmo bens públicos, como a integridade do processo eleitoral, explica o docente. Diante desses cenários, “uma das responsabilidades das plataformas, ou mesmo da intervenção do Judiciário, seria ora indisponibilizar conteúdos danosos, ora diminuir seu alcance, proibindo o impulsionamento, por exemplo”, complementa.

 

Papel da Universidade é qualificar o debate, visando o interesse público

Para a doutoranda da ECA, enfrentar o senso comum no debate sobre liberdade de expressão exige muita paciência e conversa, e a Universidade tem papel fundamental nessa luta. Ela acredita que a instituição “tem a tarefa de oferecer caminhos de organização e proteção da sociedade, que está fragilizada diante do enorme poder dessas empresas”.

Esse momento de discussão sobre diversas temáticas relacionadas à internet é uma grande oportunidade para qualificar o debate sobre liberdade de expressão e revisar conceitos do mundo digital, que são atualizados tão rapidamente, segundo a pesquisadora. “A tecnologia não é neutra, ela pode ser ambivalente. É preciso uma reflexão crítica para resgatar aquilo que pode ser aproveitado em prol do interesse público, eliminando o que traz distorções e doenças para a sociedade”, conclui.
 

Foto de quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, sentados à mesa. O homem mais à direita gesticula enquanto fala próximo a um microfone. Ele é branco, tem cabelos escuros e usa barba. A mulher sentada ao lado dele o observa. A senhora e o homem sentados mais à esquerda fazem anotações.
O seminário proporcionou discussão entre os especialistas e o público. A conversa  foi mediada por Camilo Vannuchi, jornalista e doutor em Comunicação pela ECA. Imagem: Mariana Zancanelli/LAC

 

 

 


Imagem de capa: Florian Schmetz/Unsplash