CAP | Departamento de Artes Plásticas



Pesquisa da ECA ajuda a tornar obras de arte mais acessíveis a pessoas cegas

Com a colaboração de pessoas com deficiência visual, dissertação de Karen Montija aponta possibilidades de criação e experimentação com obras de arte

Vida acadêmica
Uma mulher branca com cabelos curtos castanho avermelhados e cacheados nas pontas. Ela toca o polegar com o queixo e apoia o outro braço no bíceps.
Karen Montija. Educadora e mestra em Artes Visuais pela ECA. Foto: acervo pessoal

Promover a integração e participação de pessoas cegas e de baixa visão em exposições de arte é o tema da dissertação de mestrado intitulada Picasso Pinta Feio: Proposta de acessibilidade à experiência estética com a arte por meio da mediação com pessoas cegas e com baixa visão em espaços culturais, realizada por Karen Montija, artista visual, fotógrafa e educadora especialista em acessibilidade cultural. 

A dissertação foi defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) e teve a orientação da professora Maria Christina Rizzi, além de contar com colaborações diretas e indiretas de pessoas com deficiência, instituições culturais e equipes educativas, que guiaram a autora em uma “caminhada prazerosa e reveladora”, como ela mesma conta a seguir.

 

Artes visuais para quem não vê

A pesquisa de Karen é motivada por sua experiência pessoal, sobretudo, da relação com seu pai, Claudio Montija, que gradativamente foi perdendo a visão em decorrência da catarata, assim como por sua atuação profissional em espaços culturais e em sala de aula

Em sua passagem pelo Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) no Rio de Janeiro, Karen teve a oportunidade de trabalhar com a educadora cega Camila Alves e de monitorar exposições para pessoas cegas e de baixa visão. Logo em sua primeira monitoria para uma pessoa cega, ela conta que sentiu que sua forma de explicar as obras não funcionaram bem. O visitante expressou sinais de cansaço, o que a fez suspeitar que ela estivesse usando informações em excesso. Quando pensa nessa época, Karen acredita que tentava suprir a falta da visão, ao invés de se concentrar nas outras potencialidades que uma pessoa cega possui.

Em sala de aula, a pesquisadora fala sobre sua experiência com Guilherme, um aluno cego do ensino médio. Irônico, doce e bem humorado, ele parecia lidar bem com a falta de visão, lembra Karen. Dessa experiência, ficou marcada uma aula que preparou sobre o Egito antigo, em que produziu uma extensa apresentação de slides com imagens que, ao final, colocou boa parte da classe para dormir, inclusive Guilherme. Em outra oportunidade, ela recorda de aplicar uma avaliação da turma: enquanto ele fez uma prova de argila, o restante da turma realizou uma avaliação convencional. Ver Guilherme isolado da turma por conta de sua deficiência visual durante a prova gerou grande incômodo na educadora.

Dessas primeiras experiências e ao longo de dez anos como educadora de propostas acessíveis, Karen acumulou muitas questões sobre como desenvolver experiências estéticas e educativas que fossem bem recebidas por pessoas cegas e de baixa visão, o que a trouxe ao mestrado na ECA.

 

Proposta de experiência estética para pessoas cegas e de baixa visão

Uma mulher branca de cabelos lisos na altura do ombro está sentada no chão, com as pernas cruzadas. Ela observa o desenho de uma figura humana, desenhada no chão de porcelanato nas cores bege, marrom e cinza claros. Um homem branco de cabelos curtos, pretos e barba preta está agachado ao seu lado, e, ao lado dele, está sentada uma criança negra. Eles interagem com a vigura no chão. Ao fundo, outra criança, de joelhos, interagem com outros desenhos feitos no chão.
 Foto da obra interativa Ontem, hoje e amanhã, de 2013, parceria entre a pesquisadora e Gabriel Victal. Na foto, eles atuam na mediação da obra para crianças. Foto: reprodução/acervo pessoal

O estudo de Karen se dá em torno da criação e aplicação do que chamou de Proposta de Acessibilidade e Experiência Estética (PAEE) de exposições artísticas para pessoas cegas e de baixa visão. 

A criação de uma experiência estética em Artes Visuais é, conforme o nome indica, pensada sobretudo para o público vidente, com espaço muito reduzido para outros sentidos. Por conta disso, as ações educativas para pessoas cegas em exposições de arte, tradicionalmente, acabam sobrepondo a informação à experiência estética, conta a educadora. “A  informação e a experiência estética não são rivais, elas têm que caminhar juntas, e não apenas uma ou a outra”.  

Outra alternativa de acessibilidade bastante utilizada em museus é o uso de uma placa tátil que reproduz a obra de arte em alto relevo e a pessoa sente a peça com as mãos. Para a pesquisadora, o método por si só não é suficiente. Um dos princípios da PAEE é justamente propor à pessoa cega uma experiência estética, que na definição da educadora é “aquilo que nos toca (...) que nos atravessa, que nos faz sentir e estética seria a qualidade dessa experiência, se ela é feliz, triste, aterrorizante e por aí vai”. 

O problema está em como proporcionar uma experiência estética a partir de uma obra que o visitante não consegue ver, ou seja, como fazer a obra de arte ser sentida. Para isso, a PAEE propõe que sejam criadas novas formas de apresentar a obra. Ao invés de tentar fazer uma representação fiel da obra, são criadas possibilidades que exploram outros sentidos e perspectivas, como um enfoque histórico ou nas cores, por exemplo. 

“Fazer alguma coisa que permita com que a pessoa cega ou de baixa visão tenha uma experiência com Artes Visuais já é uma criação (...) O que se propõe é que não se imite, mas sim que se amplie a maneira de representar a obra”, explica a pesquisadora. Karen destaca ainda a importância de considerar o repertório, os interesses, as referências e as formas de experimentar e interagir com o mundo de cada pessoa com deficiência visual que poderá ter contato com a obra de arte, o que abre margem para novas criações.

 

“As pessoas com deficiência visual, muitas vezes, são impedidas de viver essa experiência estética, porque a maioria dos recursos disponibilizados são para suprir a falta do que ela não vê e não proporcionar uma experiência estética.”

Karen Montija, mestra em Artes Visuais pela ECA

 

Dissertação de Karen Montija

Na foto há uma mulher em pé, branca, de cabelos compridos e avermelhados usando fone de ouvido à esquerda e à direita um homem branco de cabelos avermelhados. Ambos estão tocando a simulação de uma rachadura na parede, que possui várias camadas de profundidade e texturas

Atividade educativa da exposição "Picasso e a Modernidade Espanhola", realizada no CCBB São Paulo, em 2015, e, segundo a pesquisadora, o ponto de partida para a sua pesquisa de mestrado sobre a acessibilidade em mostras de arte

A câmera captura a imagem através do lado translúcido de uma instalação. Do outro lado da obra, um jovem branco de cabelos curtos escuros e uma menina branca de cabelos castanho claros. Ambos estão sorrindo enquanto interagem com uma instalação com as cores vermelha, verde, branca e azul

Atividade educativa da exposição "Picasso e a Modernidade Espanhola", realizada no CCBB São Paulo, em 2015, e, segundo a pesquisadora, o ponto de partida para a sua pesquisa de mestrado sobre a acessibilidade em mostras de arte

A câmera captura a imagem através do lado translúcido de uma instalação. Atrás dela há uma mulher e uma criança brancas interagindo com uma instalação figuras triangulares e a representação de um instrumento de cordas deformado. As cores em destaque são verde, laranja, lilás e vermelho

Atividade educativa da exposição "Picasso e a Modernidade Espanhola", realizada no CCBB São Paulo, em 2015, e, segundo a pesquisadora, o ponto de partida para a sua pesquisa de mestrado sobre a acessibilidade em mostras de arte

Na foto há uma pessoa branca de chapéu preto grande, um adereço semelhante a uma bota na perna esquerda e outro em volta do braço direito, todos pretos, finge pintar sobre uma tela. De frente para um homem branco, de cabelos castanhos curtos com um adereço semelhante a uma grande luva das cores vermelha, branca e verde, que cobre todo o braço direito. Ele tem também um objeto preso junto ao nariz para representar a desfiguração do rosto

Atividade educativa da exposição "Picasso e a Modernidade Espanhola", realizada no CCBB São Paulo, em 2015, e, segundo a pesquisadora, o ponto de partida para a sua pesquisa de mestrado sobre a acessibilidade em mostras de arte

Na foto há um menino branco de chapéu preto grande, um adereço semelhante a uma bota na perna esquerda e outro em volta do braço direito, todos pretos, finge pintar sobre uma tela. De frente para ele há uma mulher branca, de cabelos castanhos e rabo de cavalo com um adereço semelhante a uma grande luva das cores vermelha, branca e verde, que cobre todo o braço esquerdo. Ela tem também um objeto preso junto ao nariz para representar a desfiguração do rosto

Atividade educativa da exposição "Picasso e a Modernidade Espanhola", realizada no CCBB São Paulo, em 2015, e, segundo a pesquisadora, o ponto de partida para a sua pesquisa de mestrado sobre a acessibilidade em mostras de arte

Na imagem há duas placas translúcidas grande, sendo que uma tem a ilustração de um rosto desfigurado e a outra com um instrumento de cordas desfigurado. Em cada uma delas há duas pessoas interagindo com a instalação

Atividade educativa da exposição "Picasso e a Modernidade Espanhola", realizada no CCBB São Paulo, em 2015, e, segundo a pesquisadora, o ponto de partida para a sua pesquisa de mestrado sobre a acessibilidade em mostras de arte

Na foto há duas pessoas de costas para a lente da câmera interagindo com uma placa translúcida com a ilustração de um rosto com traços pretos, vermelhos e azuis

Atividade educativa da exposição "Picasso e a Modernidade Espanhola", realizada no CCBB São Paulo, em 2015, e, segundo a pesquisadora, o ponto de partida para a sua pesquisa de mestrado sobre a acessibilidade em mostras de arte

Fotos: reprodução/acervo pessoal

 

“Fazer COM e não fazer PARA”: desenvolvimento e aplicação da proposta

Para que a PAEE fosse criada, foi preciso envolver pessoas com deficiência visual e outros profissionais. Karen destaca a contribuição de Camila Alves, que fez apontamentos para a proposta. “Eu acho que a grande história é você fazer o trabalho com pessoas com deficiência e não para elas (...) Você acaba descobrindo, inclusive, outras percepções sobre a obra”, conta Karen.

A expectativa de Karen é que qualquer pessoa que entre em contato com a PAEE  tenha a possibilidade de aplicar, no seu local de trabalho, propostas educativas de acessibilidade. Ao criar novas formas de percepção das obras de arte, é possível integrar as pessoas com deficiência visual a outros públicos que visitam a mesma exposição. Para isso, a perspectiva de diversas áreas e de profissionais e pessoas com deficiência é fundamental: “foi por meio de olhares plurais que as mais variadas formas de diálogo foram possíveis na PAEE”, acredita Karen.

O primeiro artista a ser mediado por meio da PAEE foi Pablo Picasso, com a pintura El pintor y la modelo e outras obras. O foco foi fazer um trabalho acessível em conjunto com pessoas cegas, em que foram criadas obras que buscassem alcançar a expressividade da obra original ao invés de fazer uma representação fiel dela. A ideia era que a pessoa cega experimentasse a desfiguração humana no próprio corpo, a partir de materiais como espuma e tecidos, com pesos e tamanhos diferentes, que dificultavam a movimentação. Foram adicionadas cores às peças, pensando nas pessoas de baixa visão e videntes.

 

“O nome da minha dissertação é ‘Picasso Pinta Feio’, porque uma visitante cega disse que Picasso pintava muito feio, depois de utilizar um dos recursos que a gente tinha criado, que não era uma placa tátil, mas adereços que as pessoas vestiam e sentiam no próprio corpo a desfiguração humana que Picasso pintava”

Karen Montija, mestra em Artes Visuais

 

Atualmente, a PAEE está sendo aplicada no Instituto Gustavo Rosa, no Sesc São Paulo e no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. A dissertação também irá se tornar livro:  encorajada pela banca, a pesquisadora enviou o trabalho para algumas editoras, e, no primeiro semestre de 2024, terá sua obra publicada pela editora Appris.

Para Karen, é importante que o trabalho realizado durante o seu mestrado não se restrinja a debates direcionados ao ambiente acadêmico. “O que me motivou a fazê-la [a dissertação] foi porque ela é o relato de um trabalho prático que foi realizado, que ainda acontece (...) O que eu quero dizer, é que ela não fica só no mundo da teoria, ela acontece na prática, é da prática que a gente tira nossas conclusões, reflete e avalia”, finaliza a educadora.

 


Foto de capa: Reprodução/acervo pessoal