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Redação virtual veio para ficar, mas pode comprometer relevância social do jornalismo

O trabalho remoto traz sobrecarga de tarefas, diminui a convivência, afeta processos criativos e flexibiliza direitos, mas pode potencializar a diversidade no jornalismo

Comunidade

Todos os filmes que tratam temas que envolvem o jornalismo têm como cenário um espaço principal: a redação. Em muitos casos ela chega a ser “atriz principal”. Isso porque o espaço social da produção jornalística é o lugar onde torna-se possível retratar os processos, mostrar toda a construção da pauta e, consequentemente, as mudanças que ocorrem na área.

Mesas com um jornalista ao lado do outro, computadores, estúdio, sala aquário, ou, como em veículos menores, sala pequena dividida com outras organizações, papéis acumulados na ponta da mesa, reunião de pauta na cozinha ou na garagem emprestada. A redação física, seja do tamanho que for, sempre fez pulsar os vários tipos de jornalismo.

Em 2022, a transição e mudanças neste espaço continuarão. Seja com o aperfeiçoamento da estrutura física, com a adoção do modelo híbrido ou do chamado “cloud based”, a tendência é que a redação seja cada vez mais enxuta, com jornalistas cumprindo funções relacionadas à ciência de dados e ao marketing. A fotografia vai ficar cada vez mais parecida com um grafo que mapeia uma rede social.

Com a pandemia, as redações se esvaziaram. As restrições de circulação e indicações de isolamento social se impuseram como medidas de segurança às organizações e trabalhadores. Como serviço essencial, o jornalismo assume ainda maior relevância no processo de informação e instrução da sociedade.

De repente a redação passou a fazer parte da casa, que teve que ser reorganizada. Segundo dados do relatório Como trabalham os comunicadores no contexto de um ano da pandemia da Covid-19, do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho — CPCT/USP, entre os respondentes que se declararam jornalistas atuantes em veículos de produção noticiosa, 64% estavam atuando em jornada home office e 15% em jornada mista.

O período pandêmico aprofundou alterações no mundo do trabalho que já estavam em curso. Como um dínamo, acelerou aspectos que desde a crise do capital de 2008 vêm ocorrendo, como o uso de plataformas como espaço social de trabalho. Esse fenômeno tem sido denominado uberização ou plataformização do trabalho. Diz respeito ao uso de infraestrutura que tem como objetivo fazer a mediação entre dois ou mais grupos e sua lógica se dá através da venda dos dados gerados por essa comunicação. Outras questões foram acentuadas, como a expulsão de trabalhadores de postos formais de trabalho, fazendo-os lança mão dos próprios recursos e criar alternativas para sobreviver no contexto de flexibilização dos direitos sociais também com o uso das plataformas digitais.

Para os jornalistas, essas plataformas converteram-se em um novo espaço: a redação virtual.

 
A redação no centro das mudanças do jornalismo

A redação, como espaço onde as relações de trabalho acontecem, passou a ser vivenciada no ambiente virtual, constituído por um emaranhado de mensagens trocadas por e-mail, WhatsApp, videoconferência e arquivos na nuvem. Ao olhar além das redações “tradicionais” ou da chamada grande imprensa, percebemos que a redação virtual já era uma realidade para veículos que atuam no jornalismo digital ou àqueles que não podiam pagar pela infraestrutura de uma sede. Quanto mais precário, mais dependente das plataformas para organizar a produção jornalística.

Mas foi durante a pandemia que o modo de trabalho tornou-se hegemônico. Para Tom Trewinnard, cofundador e diretor de operações da Fathm, este momento de crise é também uma janela de oportunidade para repensar este espaço da redação. “Temos a oportunidade de traçar um caminho proativo para o nosso setor. As redações que sobreviverão e prosperarão no mundo pós-covid-19 serão aquelas que abraçarão o conceito de equipes remotas”, afirmou em artigo.

 

Mudar o eixo gravitacional da redação tem como consequência alterações significativas quanto ao espaço-tempo, nas atribuições e no fluxo de trabalho.

 

Foi o caso da Fernanda*, de 39 anos, que trabalhava como editora de texto para TV e foi transferida para a equipe do Portal do grupo de mídia de grande porte para o qual trabalhava. De acordo com Fernanda, “era uma forma de trabalho mais fácil, mais prático de fazer em casa. Como eu tenho uma doença crônica, a TV estava se adaptando ainda a esse teletrabalho. As ferramentas para o portal** e a estrutura, eram bem mais simples”.

A mudança nas funções também foi apontada por Marcelo* jornalista que trabalha no setor de audiovisual de uma revista impressa de circulação nacional. Segundo ele, as atribuições responsáveis pela gestão e controle do trabalho perderam o sentido no ambiente digital. “O gestor, por exemplo, ficou sem função. As funções de controle do trabalho foram cortadas. O diálogo acontece mais entre a redação e a produção.”

As direções das empresas também ficaram perdidas neste processo. Katia*, jornalista de um veículo de jornalismo digital de médio porte, afirma que a empresa chegou a elaborar um produto novo só para preencher o tempo de trabalho dos profissionais. “Quando começou a pandemia, a direção chegou a criar um programa novo diário com receio de que as pessoas ficassem em casa sem fazer nada.”

Privilégio difícil de encontrar na rotina de trabalho dos jornalistas. Quando questionado sobre o que mais sentiu falta durante a pandemia, Marcelo respondeu que “podia parecer estranho”, mas durante essa experiência de trabalho remoto sentiu “muita falta do tempo sem trabalho”. Ele explica que “estava morando no seu escritório e trabalhava desde a hora que acordava até a hora de dormir.”

Morador de um apartamento de 40 metros quadrados, Marcelo aproveitou o regime remoto e voltou para a casa dos pais no interior de São Paulo. “Vim para casa dos meus pais e isso melhorou a minha qualidade de vida e saúde mental.”

O fim dessa barreira também conta com o entusiasmo de Trewinnard por ser, segundo ele, o fator que pode trazer diversidade e acessibilidade às redações. “Um jovem jornalista que quer trabalhar para um jornal de projeção nacional no Reino Unido, por exemplo, não tem como equilibrar o aluguel exorbitante de Londres com o salário inicial de jornalista. Consequentemente, somente aqueles com meios financeiros acabam inseridos no setor”, defendeu.

Além da intensificação, há o alargamento da jornada de trabalho (sem aumento de salário). Isso acontece porque quando há a mudança da técnica, ou seja, da forma de trabalho, há uma inferência direta no uso do tempo e do espaço. As próprias plataformas contribuem para que a sensação de passagem do tempo seja mais curta e a percepção do espaço mais ampliada.

As análises sobre o home office são diversas e uma das queixas é de que nessa modalidade há menos cooperação e solidariedade entre os profissionais. Marcelo conta que sentiu a diferença. “Cada um ficou cuidando do seu trabalho, da sua revista. A relação fica somente entre a pessoa e o contratante; as diretorias ficaram mais isoladas e as hierarquias mais divididas e consolidadas.”

Essas situações trouxeram desafios novos para os jornalistas e à cultura organizacional. Novas funções são criadas, outras tornam-se inativas. Ao mesmo tempo que é possível ter uma contratação mais diversa, as empresas estão mais enxutas, o que exige ainda mais o perfil multitarefa do profissional. Como vimos, o controle da jornada é essencial para uma relação saudável no trabalho. A diluição das carreiras merece atenção para seus amplos significado tanto no fazer jornalístico quanto na própria rotina.

 

Em 2022, esse modelo vai se consolidar?

Ainda é cedo para afirmar se esse tipo de redação vai se consolidar. Mas a tendência, devido à crise de financiamento do jornalismo e processo de remonetização da notícia feito pelas plataformas, é que haja ainda mais o esforço de enxugar o orçamento com a redução da manutenção desta estrutura. A editora Abril foi uma das empresas que adotou o regime de trabalho home office durante a pandemia e já decidiu que não vai mais voltar para a sede. Ao invés disso, vai disponibilizar um coworking, espaço compartilhado de trabalho só com mesas e cadeiras.

Em contrapartida, segundo relatório do CPCT, com o home office os profissionais assumiram os custos de energia, alimentação, internet, computador, notebook e tablet e muitos outros. É preciso que esses direitos sejam incorporados nas convenções e negociações coletivas. Além da estrutura, o chamado direito ao desligamento que permite ao funcionário não atender chamadas e e-mails fora do horário de trabalho.

Mas nem todos os veículos fazem essa transição de forma simples. Empresas que requerem infraestrutura para armazenamento do conteúdo vivenciam dificuldades. “Uma coisa é estar dentro da redação, perto do HD (disco rígido) do fotógrafo que a gente desce ali e pega, mas no trabalho remoto a gente tinha que ficar mandando o HD para as pessoas, cada uma em um canto da cidade”, relatou Marcelo. Não à toa, as redações de rádio e televisão foram as que mais continuaram com as equipes na sede física, mesmo tendo esquema de escalonamento e redução do quadro de funcionários atuando in loco.

Outros fatores influem na produção da matéria jornalística. O processo é criativo e dá forma a um produto intangível que fica também como registro histórico. “O trabalho criativo quando a gente faz em conjunto é muito menos desgastante. Por exemplo, em casa a gente tira a pauta e eu preciso ter ideias sozinha”, apontou Katia.

A falta da equipe também é sentida por Fernanda, que destaca que a vivência na redação é essencial. “Estar inserido num grupo faz muita diferença no trabalho. Quando você está na redação você acompanha os assuntos, está mais atenta ao que está acontecendo.”

Diante deste cenário, é importante que os jornalistas tenham plena consciência que os problemas não são individuais. Mesmo no ambiente digital, é preciso reafirmar a cooperação e solidariedade entre os jornalistas, encontrar um jeito para que conversas espontâneas no café ou na hora do almoço se realizem de outras formas.

Não há uma fórmula mágica que determinará como será a redação no futuro próximo. O momento é de disputa do rumo e função da redação. As organizações precisam se atentar que a dissolução total deste espaço pode até reduzir os custos, mas servirá também àqueles que defendem que o jornalismo não cumpra mais papel relevante nos tempos atuais.

Seja na redação física ou virtual, o importante é que o jornalismo seja vibrante, envolvente, diverso e plural para seguir sendo essencial à sociedade, à democracia e ao rumo da nossa civilização.
 

Notas:
*Para preservar as fontes, garantimos o anonimato.
** Também optamos em não declarar o nome das empresas jornalísticas

 

 

Ana Flávia Marques e Janaína Visibeli são pesquisadoras do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da ECA USP (CPCT ECA USP).

 

Banner de divulgação do especial "O Jornalismo no Brasil em 2022". O fundo da imagem é vermelho e há, à esquerda, a silhueta do Brasil em azul-esverdeado. No meio do Brasil, há um megafone. Como detalhe, atrás da ilustração do Brasil, existem linhas pretas. No centro, em letras brancas, está escrito "Jornalismo no Brasil 2022" e no canto direito há a logo da Abraji e do Farol Jornalismo, além da escrita "Projeções para o jornalismo no Brasil em 2022".Publicado originalmente no Medium. Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022, idealizada pela Abraji e pelo Farol Jornalismo. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.


Imagem de capa: mulher utilizando um laptop. Imagem: Andrew Neel/ Unsplash e Medium