Nelson Rodrigues: o anjo pornográfico

Entre conservador e libertário, polemista e gênio, relembre o grande nome do teatro nacional

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Foto em preto e branco. Nelson Rodrigues, um homem branco, de cabelo preto, que usa um terno. Aponta com a mão "em formato de arma" para a câmera.
Foto: Domínio público/Acervo Arquivo Nacional

Nelson Rodrigues foi um dramaturgo, romancista, contista, cronista e jornalista brasileiro. Personalidade polêmica das artes no país, ostentava um forte conservadorismo ao mesmo tempo em que, em suas obras, questionava os vícios por trás do moralismo nacional. Cheio de contradições, foi nomeado “anjo pornográfico” em sua biografia escrita pelo jornalista Ruy Castro. No dia 23 de agosto, completaria 110 anos.

Na opinião de Antônio Rogério Toscano, para se encarar o valor de Nelson Rodrigues sob o olhar dos dias de hoje, é necessário que vejamos nele uma representação da nossa tragédia política e histórica e das contradições de sua época. Assim, é possível resistir aos preconceitos e à visão política do autor, que poderiam afastar novas leituras de seu trabalho.

Toscano é dramaturgo, diretor teatral e professor. Dá aulas na Escola de Arte Dramática (EAD) e no curso de Comunicação das Artes do Corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 2002, defendeu a tese de mestrado Nelson Rodrigues - Matriz da Dramaturgia, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O primeiro contato do pesquisador com Nelson foi ainda na escola. Um professor indicou a leitura da obra A Falecida.
 

"Eu conheci o Nelson Rodrigues nas aulas de Literatura do colegial e isso foi muito impactante para mim, sobretudo pela forma como ele desafiava algumas certezas morais que eu tinha naquela idade, naquele lugar, no interior de São Paulo. Então a obra dele se recobria de fascínio.”

 

Antônio Rogério Toscano, professor da EAD

 

Toscano defendeu, em seu mestrado, que, além de um autor essencial para pensar o teatro moderno brasileiro — o que é considerado com alguma unanimidade —, Nelson Rodrigues também pode ser considerado um dramaturgo inaugural para a dramaturgia contemporânea nacional.
 

Quem foi Nelson Rodrigues?
 
Foto em preto e branco. Sobre um palco, à esquerda, três homens brancos e de vestimentas sociais interagem com o cenário. Há uma elevação no palco, um pouco mais alta que o trio, sobre a qual parece haver um cenário representando a sala de uma casa.
Da esquerda para a direita, Santa Rosa, Zbigniew Ziembinski, e Nelson Rodrigues, examinando o cenário de Vestido de Noiva em 1943. Imagem: Reprodução/Cedoc Funarte

Nelson Falcão Rodrigues nasceu em agosto de 1912, em Recife, mas já novo se mudou para o Rio de Janeiro. Quinto filho de 14 irmãos, seria influenciado a se tornar jornalista pela ocupação do pai, que fundou o jornal A Manhã. Começa a trabalhar como repórter policial aos 13 anos e, ao longo da vida, escreveu para jornais como Correio da Manhã, O Jornal, Última Hora, Manchete Esportiva e Jornal do Brasil. Estreou no teatro em 1941, com a peça Mulher Sem Pecado, mas ganhou real reconhecimento dois anos depois, com a encenação de Vestido de Noiva.

Para Antônio Toscano, Nelson é pioneiro em uma voz de modernização do drama brasileiro. "Ao abordar essa face urbana de uma sociedade brasileira carioca, em que os comportamentos são cada vez mais desafiadores em relação a uma ordem moral arcaica e rural, ele é o inaugurador de uma fala que tem um ritmo próprio da cidade, uma prosódia que não busca nenhum tipo de literatice e que tenta flagrar a vida cotidiana de um modo muito objetivo. O diálogo rodrigueano é ágil, tem uma rítmica que, de certo modo, mimetiza a pressa da cidade”.

Mas o professor destaca que entender a obra e a pessoa de Nelson Rodrigues passa por entender a ambivalência do autor, que se abre a uma percepção do mundo bastante libertária, ainda que dentro de sua perspectiva ultraconservadora. Apesar de sua relevância para o teatro, Toscano comenta a dificuldade de se ler o autor com um olhar mais atual.
 

"Não é fácil para a gente hoje ler o Nelson Rodrigues e encará-lo sem confrontar uma certa dimensão racista, patriarcal e machista bastante problemática que a obra dele tem aos nossos olhos e que nem sempre teve. Enquanto essas discussões não estiveram na pauta, nós também estávamos muito mais acostumados a uma naturalização de coisas que hoje o nosso olhar não aceita."

 

Antônio Rogério Toscano, professor da EAD

 

O pesquisador, no entanto, localiza o escritor em sua época. Nelson Rodrigues viveu durante o período de expansão urbana do Estado Novo. “As cidades crescem e são perfeitos esconderijos para esses desejos reclusos, mas, caso você seja descoberto, você vai ser julgado por uma moral arcaica, de um país que se modernizou muito rapidamente e onde essa modernização não se refletiu no campo da moral”.

“Se não encaramos ele como uma representação da nossa tragédia, política e histórica, é difícil encará-lo hoje. Ele seria consumido por seus preconceitos e sua voz que por vezes beira o lamentável”, diz. “Tanto no âmbito da ficção que ele cria, quanto o próprio sujeito que ele é são expressões dessa ambivalência trágica da nossa história, dessa convivência de uma dimensão política ultraconservadora, mas que vive num mundo em que esse conservadorismo talvez nem faça tanto sentido, porque é um mundo que está se inventando, um mundo todo novo”.

 

 


Foto de capa: Domínio público/Acervo Arquivo Nacional