Além da Previsão: Inteligência Artificial, Cinema, Processos Criativos e Arte
Professor Marcelo Müller, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão, reflete sobre potenciais artísticos da inteligência artificial generativa

Imagine ter um dia estressante, em que um turbilhão de relações e acontecimentos te faz sentir que saiu do controle, e tudo o que você deseja é esquecer do mundo vendo uma série qualquer com uma companhia agradável. Mas em Joan is Awful, da série Black Mirror, o que a protagonista assiste é uma versão dramatizada de seu próprio dia, com um viés condenatório sobre suas atitudes, que parecem ser ainda mais questionáveis do que quando aconteceram na vida real. Conforme a trama se desenrola, descobrimos que a série é produzida por um super-potente computador quântico capaz de gerar um episódio novo a cada dia, com base na captura de diálogos do celular de Joan. Como em tantos outros filmes que exploram distopias sobre o futuro dominado pela inteligência artificial (IA), estamos tão distantes de ter máquinas que produzam filmes dessa forma, quanto estamos da Skynet de Exterminador do Futuro ou das Máquinas de Matrix. Mas a explosão na demanda por mídias nas redes sociais, somada à necessidade da individualização dos conteúdos, já nos coloca diante de obras audiovisuais realizadas automaticamente por ferramentas de inteligência artificial, como por exemplo os vídeos de retrospectivas que recebemos do Spotify.
No campo das artes e do audiovisual, a presença da IA não é novidade, mas tem crescido imensamente nos últimos anos, a partir da disseminação das ferramentas de inteligência artificial generativa. Lev Manovich, um dos pesquisadores mais destacados sobre arte digital, sugere que as técnicas atuais de geração de objetos culturais a partir de IA podem significar uma revolução tão grande quanto a invenção da fotografia. Ao mesmo tempo, ele alerta que a percepção cultural sobre o que chamamos de IA se modifica com o passar do tempo e o que hoje é considerado inteligente pode deixar de ser classificado dessa forma quando seu uso for generalizado pelas práticas.
A previsão e a repetição dos clichês
Enquanto observamos o incremento gradual da presença das mídias geradas por IA, dividindo opiniões e incendiando debates que vão da ética ao mercado de trabalho, é importante ressaltar que há pelo menos duas décadas os algoritmos de recomendação condicionam o que assistimos nas plataformas de Video On Demand. Treinadas pelos padrões de consumo de milhões de usuários, esse tipo de IA não só sugere o que cada um de nós deve assistir como também indica aos produtores o que deve ser produzido, prevendo a recepção do público de forma que faria inveja a Irving Thalberg, o lendário produtor hollywoodiano dos anos 1920 e 1930, que ficou famoso por acertar o gosto do público e produzir grandes sucessos de bilheteria. Mas embora a capacidade de previsão do público seja fundamental para a viabilidade do negócio audiovisual, repetir excessivamente o que funcionou nas obras realizadas anteriormente pode significar um processo de decadência criativa, condenando o público a um universo de clichês capaz de desestimular o consumo em geral.

Nesse sentido, o uso pouco criterioso das ferramentas de IA Generativa pode agravar ainda mais esse problema. Como o seu treinamento é feito com objetos culturais existentes, por princípio as ferramentas repetem os padrões detectados frequentemente nas obras que compuseram o seu treinamento. Até mesmo trabalhos famosos como Retrato de Edmond de Belamy, do coletivo Obvious, leiloada em 2018 por quase meio milhão de dólares, nos lembram dessa característica, que é ao mesmo tempo uma qualidade e uma limitação. A obra reproduz padrões presentes nos retratos pintados nos séculos XIV ao XIX que foram usados para treinar o sistema que a gerou, mas será que oferece alguma novidade além do fato de ter sido produzida com o uso de uma IA? Seu preço, provavelmente, se refere mais à ruptura que a obra representa na forma de produzir uma pintura do que estritamente ao seu valor estético e criativo. Joanna Zylinska classifica essas obras, que estão mais a serviço das plataformas que da arte e que usam IA para repetir o mesmo com a promessa de novidade, como “candy crush art”. Mas, com o passar do tempo, podemos observar que as obras feitas com IA não se limitam apenas a provocar fascínio por como foram feitas e se destacam trabalhos que possivelmente só poderiam ser feitos com o uso destas ferramentas.
IA para fazer o impossível
Alguns artistas usam IA para dar imagens a quem não tem, como os retratos feitos por Giselle Beiguelman na exposição Venenosas, Nocivas e Suspeitas que está em cartaz no Centro Cultural da Fiesp, outros artistas exploram o absurdo (im)possível, como no curta-metragem PLSTC, de Laen Sanchez, que nos mostra o universo marinho transformado pela junção asfixiante entre a vida e o plástico, e outros que criam universos ficcionais transmidiáticos, como as Nice Aunties, que propõe um mundo ficcional em que as senhoras de Singapura e outros países orientais, antes condenadas ao serviço e cuidado dos outros, podem viver em uma sociedade de absurdo deleite, ou ainda a especulação sobre os espaços latentes da arte identificados a partir da coleção do MoMA na prestigiosa obra Unsupervised, de Refik Anadol, cuja imagem abre o ensaio de Joanna Zylinska sobre arte e IA na revista Science.
É muito importante destacar que, independente de ser visível ou não na obra que será apresentada ao público, o uso das ferramentas dotadas de IA traz novas possibilidades para os processos de realização artística. Desde os anos 1990, diversos autores descrevem o computador como uma ferramenta que potencializa o pensamento e participa da elaboração das obras a partir de um processo de diálogo entre o humano e a máquina. Mas o empoderamento dos processos de realização com ferramentas de IA generativa é capaz de proporcionar um processo criativo com velocidade, acessibilidade e possibilidades de simular e experimentar inéditos até então. Essa ferramenta de extensão do pensamento humano que permite gerar imagens, vídeos, vozes, objetos virtuais e textos, estimula o fluxo das ideias desde as primeiras anotações até a elaboração das inúmeras partes da obra, contribuindo de diversas formas na sua construção. Hoje, as ferramentas são acessíveis e permitem o exercício criativo inclusive nas abordagens e formas de uso por parte dos artistas, que podem inventar métodos de trabalho improváveis antigamente, como por exemplo um escritor ou roteirista pode pedir a um um modelo de linguagem, como o ChatGPT, para conversar como se ele fosse um de seus personagens, e assim discutir em primeira pessoa os seus dilemas e opções dramáticas.

Tal e qual qualquer obra artística, uma que utiliza IA em sua realização também é resultado de um longo processo de construção em rede, permeado por tentativas, erros e acertos, descobertas, reelaborações e mudanças de rumo. A IA exige muito conhecimento cultural para lidar com os clichês e os vieses implícitos à técnica. Escrever bem é importante, pois há a necessidade de, na maioria das vezes, descrever em palavras o que pretende. Mas, seja utilizando textos, imagens, vozes ou qualquer outra modalidade, para a criação de obras originais, é preciso elaborar estratégias de abordagem disruptivas e construir um processo criativo tão longo e trabalhoso quanto os métodos tradicionais.
Diante desse universo de possibilidades, há um convite à prazerosa experimentação da criação, ao estabelecimento de um fluxo de pensamento em diálogo com a máquina e à construção conjunta de inteligências artificiais que respeitem critérios éticos e artísticos. Assim, no lugar de ameaçar o trabalho humano, a tecnologia será capaz de potencializá-lo e democratizá-lo. Dessa forma, seremos capazes de fazer melhores filmes que as distopias cheias de lugares comuns sobre a IA que vemos hoje e também teremos mais ferramentas expressivas para a construção de diálogos artísticos entre nós, humanos, que nos permitam a construção de melhores futuros.
Sobre o autor
Marcelo Müller é professor no Curso Superior do Audiovisual da Universidade de São Paulo, pesquisador em Inteligência Artificial e Realidade Virtual, além de diretor e roteirista. Formou-se em Cinema e Vídeo pela Escola de Comunicações e Artes da USP, onde também obteve seu mestrado e doutorado. Realizou ainda sua formação pela Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV, Cuba), onde graduou-se como CineTeleasta pelo Curso Regular e participou do curso Como Contar um Conto com Gabriel García Márquez. É autor dos roteiros dos filmes Infância Clandestina e O Outro Lado do Paraíso, criou séries televisivas como Encerrados e Brilhante FC e dirigiu o longa-metragem Eu Te Levo, entre outras obras audiovisuais.
Referências
Esse texto se relaciona diretamente com as seguintes referências, que podem ser um bom caminho para quem quer saber mais do assunto:
Artigos e Livros
MANOVICH, Lev; ARIELLI, Emanuele. Imagens IA e mídias generativas: notas sobre a revolução em curso. Revista ECO-Pós, v. 26, n. 2, p. 16–39, 2023. Disponível em: REVISTA ECOPOS
SALLES, Cecília. Redes de criação: construção da obra de arte. São Paulo: Annablume, 2006.
ZYLINSKA, Joanna. AI Art: Machine Visions and Warped Dreams. London: Open Humanities Press, 2020.
Filmes e Episódios de Série
Matrix. Direção: Lilly Wachowski, Lana Wachowski. EUA: Warner Bros., 1999. 136 min.
O Exterminador do Futuro (The Terminator). Direção: James Cameron. EUA: Orion Pictures, 1984. 107 min.
Joan Is Awful. Direção: Ally Pankiw. Roteiro: Charlie Brooker. Black Mirror – Temporada 6, Episódio 1. Reino Unido: Netflix, 2023.