Institucional



Qual o preço da universidade pública?

Muitos estudantes precisam trabalhar para se manter durante a graduação. Ecanos comentam o impacto de se dividir entre trabalho e estudos

Vida acadêmica

Para a maior parte dos estudantes da ECA, trabalhar é uma necessidade para se sustentar durante a graduação. Todos os anos, a Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) pergunta aos ingressantes, durante a inscrição, como eles pretendem se manter ao longo do curso. 

Os dados de 2017 a 2022 apontam que, em média, 80% dos calouros entendem que será preciso exercer alguma atividade remunerada, que pode ou não ser somada à ajuda financeira da família ou de bolsas de estudo.

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Imagem: Gráfico de Susana Sato a partir de dados da Fuvest.

Os números também indicam que, olhando para os dados dos últimos seis anos, cerca de 4% dos ingressantes pretendiam se manter apenas com as bolsas durante a graduação. E 12% pensavam em combinar essa renda com um outro trabalho ou apoio da família.

Robson Zanovello, cientista social formado pela USP, vê nesse número um reflexo da situação socioeconômica do país e um indício de que “cada vez menos pessoas têm o privilégio de ser sustentado totalmente pelos pais.” Para ele, a experiência da graduação é bem diferente para quem consegue e quem não consegue se dedicar apenas ao curso, e é importante se atentar a essas divergências.

 

Ponto de equilíbrio

Christian Delphino está no 5º ano de Relações Públicas e relata ter sentido enorme diferença na vida acadêmica desde que começou a estagiar. No início, o jovem ficou um pouco confuso ao precisar conciliar o trabalho de seis horas diárias com todas as outras atividades acadêmicas com as quais já estava acostumado. “O estágio não é como uma matéria, que você pode trancar, ou como uma entidade, que você pode falar ‘olha galera, eu não estou conseguindo, eu vou sair’. O estágio tem um peso maior de responsabilidade.” Por isso, houve semanas em que foi necessário adiar tarefas da graduação ou realizá-las em períodos até então reservados para descanso e lazer.

Curso diurno ou integral?

De acordo com o Manual do Candidato, da Fuvest, os cursos de Artes Cênicas, Artes Visuais, Audiovisual e Música são diurnos. Isso significa que as aulas são pela manhã e à tarde, predominando um desses períodos, e não necessariamente ocupam o dia todo em todos os dias da semana. Já os cursos integrais, para a Fuvest, são aqueles em que as aulas são distribuídas ao longo do dia.

Porém, a carga horária dedicada a realização de ensaios e trabalhos fora das aulas dificulta - e muitas vezes inviabiliza - o comprometimento com atividades remuneradas.

A situação é ainda mais complicada para os que ingressam em cursos cujo período de aulas é diurno, como os de Artes Cênicas, Artes Visuais, Audiovisual e Música. Mario Ramiro, professor de Artes Visuais, é contrário a essa grade horária e questiona: “quem consegue estudar o dia todo na universidade sem precisar trabalhar?”. Guilherme Maeda, aluno do Audiovisual, comenta que alguns colegas precisam recorrer a trabalhos noturnos para conseguir uma renda extra. Especialmente para quem já tem equipamentos próprios, é comum fazer alguns trabalhos como freelancer [termo em inglês que se refere a profissionais autônomos que assumem tarefas eventuais], tais como a cobertura fotográfica de eventos no fim do dia, ele conta.

Mario acrescenta que a graduação, além de exigir a presença do discente durante o dia todo, também gera gastos – é uma conta que não fecha. No chamado ciclo básico das Artes Visuais, por exemplo, os estudantes precisam comprar alguns materiais que a Universidade não consegue oferecer, por serem muito frágeis e de uso geral e recorrente. O professor conta que recomenda que os alunos se planejem financeiramente para montar seus próprios ateliês aos poucos, mas para isso, evidentemente, é preciso ter tempo para trabalhar.

 

Academia e Mercado

Wagner Souza e Silva, professor do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), acompanha esse desafio dos estudantes e ouve com frequência a justificativa de que não foi possível concluir determinada atividade por conta do trabalho. “Óbvio que a gente compreende, a gente percebe a dificuldade do aluno. Mas também procuramos estar atentos para ver se não está acontecendo nenhuma exploração ou  problema desse tipo”, ressalta.

Foto de jovens conversando. Um homem branco, de cabelos curtos escuros e que veste camisa amarela, está gesticulando e falando para outros jovens. Do lado direito da imagem, cerca de cinco estudantes olham para ele. Na frente dessas pessoas, há uma mesa com uma toalha preta, copos de água e alguns brindes. A maioria das pessoas usa máscara.
Sabendo do interesse dos estudantes pelo mercado de trabalho, a ECA Jr. - empresa júnior do Departamento de Relações Públicas, Publicidade e Turismo - organiza anualmente a Matraca, uma feira de recrutamento para comunicadores. Imagem: ECA Jr./Facebook

O docente observa a relação de seus educandos com o mercado e nota que esse vínculo está começando cada vez mais cedo. Ele afirma que a qualidade das turmas é muito alta e que estas têm grande potencial de contribuir com o mercado de trabalho desde que ingressam na Universidade. Por isso, os estudantes são muito procurados como mão de obra desde o início. “Eu acho que vocês [estudantes] estão entrando muito rápido, mas acho que isso não é um problema, desde que não atrapalhe na formação”, pensa. O professor complementa dizendo que o discente não deve priorizar incondicionalmente o estágio em detrimento da graduação, “afinal, vocês conseguem estagiar pelo fato de serem estudantes”.

 

“É preciso tomar cuidado para não menosprezar a vida acadêmica em função do deslumbramento com a vida profissional, que depende da universidade, de certa forma.”

 

Wagner Souza e Silva, professor e vice-chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE)

 

Guilherme, de Audiovisual, tem a percepção de que alguns colegas chegam esperando um curso muito técnico e prático, e esquecem toda a parte acadêmica da Universidade. Ao se depararem com tanta teoria, os jovens recorrem cedo ao estágio em busca de aprender sobre o dia a dia da profissão. 

Já para o professor do CJE, parece haver até mesmo certa rivalidade entre o mercado de trabalho e as bolsas de pesquisa, por exemplo. Ele pensa que, além de pagar mais, o trabalho pode se mostrar mais interessante para o aluno, na medida que traz experiências novas e bem menos teóricas do que as da sala de aula – diferentemente das bolsas.

Além disso, alguns estudantes encaram a etapa acadêmica como uma experiência que não vai agregar nada à vida profissional, segundo Wagner. “A gente tem que trazer à tona essa consciência de que a vida acadêmica é extremamente importante para a formação (...), e de que essa também é uma maneira de contribuir com o mercado de trabalho. Porque o papel da universidade é esse, é refletir sobre o que está acontecendo na sociedade”, argumenta.

 

Relevância do estágio

É essencial que os estudantes compreendam a relação entre sociedade, academia e mercado, pois ela tem peso importante dentro da Universidade. Segundo a Lei nº 11.788/2008, conhecida como Lei do Estágio, o estágio é um ato educativo supervisionado que deve fazer parte do itinerário formativo do discente. Para a maior parte dos cursos, a atividade é obrigatória e um dos requisitos para a aprovação e obtenção do diploma, de acordo com a lei.

Foto de uma palestra tirada do fundo da sala. Há diversos jovens de costas sentados em cadeiras vermelhas. As cadeiras estão dispostas para formar um corredor. Ao final desse corredor, no centro da imagem, está um homem segurando um microfone em frente a um telão com uma projeção. Ele é branco, tem cabelos curtos escuros e veste uma roupa preta. As paredes e o chão da sala são cinzas.
Na feira Matraca, os estudantes têm a oportunidade de assistir a palestras sobre o cotidiano da vida profissional. Imagem: ECA Jr./Facebook

O estágio deve ser, acima de tudo, um processo de muito aprendizado. Além de conhecer práticas e jargões da área, Christian pôde conhecer muitas pessoas que expandiram sua rede de contatos. “Eu acho que a primeira experiência profissional sempre conta muito. Porque é dela que você vai ter um parâmetro do tipo ‘gostei ou não gostei?’, ‘é isso que eu quero ou não é essa área que eu quero?’. Com certeza agregou muito, eu aprendi bastante coisa”, relata o jovem que atuou como assistente na gestão de projetos de uma agência publicitária e agora trabalha na área de inovação em uma empresa de tecnologia.

Alguns estudantes acabam se encaminhando para funções que pouco se relacionam com a temática do curso. Seja por falta de vagas na área de estudo, por dificuldade de se inserir no mercado, por não encontrar remunerações compatíveis com suas necessidades ou por outras razões, o discente opta por aceitar a oportunidade que surgir. É por isso que, para Robson, é importante que a Universidade também pense em alternativas para oferecer estágios internos e bolsas que façam sentido para a trajetória do aluno e contribuam com sua formação.

 

O auxílio das bolsas

As bolsas são uma importante ferramenta de permanência dos universitários e de fomento de projetos de pesquisa, cultura e extensão. Christian, que já participou de mais de um programa de bolsa, acredita que essa seja uma opção interessante para quem está bem no começo do curso ou para quem precisa de uma renda e não consegue se encaixar na logística que um estágio implica.  O professor Mario também reconhece a relevância desse recurso. Apesar de não serem valores muito altos, “as bolsas podem fazer muita diferença pra quem vive com um, dois salários mínimos”, pensa o docente.

Christian enxerga o Programa Unificado de Bolsas (PUB) da USP, por exemplo, como uma experiência de “pré-estágio”, mas que oferece maior praticidade por exigir uma carga menor – são dez horas semanais. “É quase um estágio porque tem que cumprir horas, cumprir tarefas, entregar relatórios. Então se assemelha um pouco a uma rotina de trabalho, além de ter o benefício”, explica. 

Contudo, é preciso reconhecer que muitas vezes o valor das bolsas não é suficiente, e geralmente está abaixo dos valores oferecidos pelo mercado. Stephany Oliveira, aluna da Educomunicação, afirma que, para quem tem uma renda mais baixa, a prioridade sempre vai ser o sustento - mesmo que isso signifique abrir mão de um projeto que seria ótimo para sua formação para poder se dedicar a um outro trabalho que remunere melhor. “A pessoa não vai poder se dar ao luxo de falar ‘vou pegar uma bolsa de 500 reais, me virar com isso e pesquisar o que eu quiser’”, declara. A própria jovem relata ter recebido uma excelente oportunidade que precisou recusar, pois o valor oferecido e a distância do trabalho para sua casa não se encaixariam na sua rotina.

Para aqueles que desejam seguir uma carreira acadêmica, como Christian, é um cenário muito frustrante. O jovem flerta com a ideia de um dia se tornar professor, mas entende que o processo pode ser longo e incerto. “Eu acho que muita gente que tem vontade, como eu, de ir pra área acadêmica acaba sendo empurrado para o mercado para conseguir se desenvolver. Porque se não a gente não vive, a gente não trabalha, não consegue dinheiro”, lamenta.

Além de todos os motivos já citados, uma hipótese para índices tão baixos de estudantes que pretendem contar com as bolsas é a falta de conhecimento dos calouros sobre o assunto. Guilherme conta que ele mesmo só foi descobrir o universo das bolsas após conversar com um colega de sua cidade que já estudava na USP. Para os outros docentes e estudantes entrevistados, de fato é muito importante que a Universidade reforce o funcionamento dos programas de permanência estudantil. É necessário também que a sociedade saiba das oportunidades de auxílio e que a USP pode sim ser seu lugar.

 

 

 


Imagem de capa: Phillipe Bout/ Unsplash