CBD | Departamento de Informação e Cultura



“Com a memória de um, a gente vai longe”: projeto Estação Memória promove resgate e intercâmbio de experiências

Projeto adotou o formato on-line durante a quarentena e tem sido fundamental para a qualidade de vida de idosos

Comunidade

Há 31 anos, em uma noite que não era de Carnaval, um cortejo inusitado iluminou as ruas de Pinheiros. Um grupo de idosos, com tochas na mão, entoava canções de outros tempos, caminhando com destino à biblioteca infanto-juvenil do bairro. A procissão festiva marcava o início do projeto Estação Memória, criado pelo professor Edmir Perrotti para estimular o resgate da memória dos mais velhos e a transmissão dessa herança cultural. Inicialmente financiado pela Fapesp, o projeto fez parte de um convênio entre a USP e a Prefeitura de São Paulo até 2008, quando passou a ser abrigado no Departamento de Informação e Cultura (CBD), já sob coordenação da professora Ivete Pieruccini, que assumiu o Estação Memória em 1997. Hoje, vinculado ao Programa USP 60+, o projeto não se resume a uma iniciativa bem-sucedida de extensão, mas também contribui para pesquisas com foco no estudo de dispositivos culturais educativos. Perrotti, atualmente docente sênior, segue atuando no projeto como consultor científico.

A metodologia sempre foi baseada na realização de oficinas presenciais. Quando a quarentena começou na cidade de São Paulo, no final de março, o atual grupo do Estação Memória havia acabado de realizar seu primeiro encontro do semestre. Sem poder sair de casa, todos tiveram que se adaptar. O começo foi meio caótico, segundo Ivete, já que a maioria dos idosos não tinha a menor familiaridade com as plataformas para reuniões virtuais. O primeiro desafio foi convencê-los de que era possível aprender a usá-las. Os quatro bolsistas do Estação Memória, Breno Bermudez, Daniel Zaidan, Gabriela Guedes e Juliana Santiago ficaram encarregados de treinar os velhinhos, à distância, com muita orientação personalizada via Whatsapp, ferramenta mais conhecida pela maioria deles. Daniel conta que no começo era angustiante ver como muitos não conseguiam participar das reuniões, mas em pouco tempo a situação começou a mudar. “Tá cada vez melhor. Cada vez mais pessoas estão conseguindo se conectar, então é gratificante ver dar certo.” Para Ivete, o desejo do encontro foi o principal estímulo para o aprendizado, já que muitos dos idosos estão praticamente sozinhos em casa.

Maio de 2020, quarta-feira. A reunião começa pontualmente às 14h, com o grupo quase inteiro já conectado via Google Meet. Enquanto esperam a chegada dos colegas restantes, o assunto do momento se impõe: os idosos lamentam a impossibilidade de viajar e visitar parentes. A situação é especialmente difícil para alguns deles, que estão com netos ou bisnetos prestes a nascer. Apesar disso, o clima é leve e animado. Em poucos minutos a reunião tem mais de 20 participantes e Ivete começa os trabalhos. A cada semestre, o Estação Memória desenvolve uma temática. A forma como os temas são escolhidos varia muito, mas “via de regra, o processo é estimulado pelas próprias memórias dos participantes", explica a docente. Com frequência, filmes, músicas e poesias são utilizados como ponto de partida. Neste momento, o grupo tem explorado o tema dos cinco sentidos, com cada reunião dedicada a um sentido diferente. Inspirada pelo filme Loucuras da Primavera, visto na véspera do encontro, Ivete propõe que o grupo trabalhe o sentido da visão, compartilhando a memória de uma imagem inesquecível. Ela conta que tomou a decisão ao ouvir a seguinte fala do protagonista: “nada como uma boa imagem pra gente passar a enxergar melhor”.

 
Como um fio de novelo

Elzira é a primeira a falar. Ela recorda do céu estrelado que via do alpendre da sua casa de infância, enquanto o avô lhe ensinava sobre as constelações. “A associação do céu estrelado com o meu avô me acompanhou sempre.” Ela conta que na semana anterior foi procurar a lua nova e viu estrelas no céu de São Paulo pela primeira vez em muito tempo, com a menor poluição devido à quarentena. “Eu esqueci que eu não via estrelas. Lembrei do céu estrelado da minha infância, da emoção que me traz o céu estrelado, de me sentir mergulhando no universo.” Já Esther lembra do céu azul sem nuvens, mais especificamente de um momento com seu pai quando tinha cerca de 5 anos de idade: “Esther, tá vendo? É um Zeppelin. A nossa primeira viagem para a Europa vai ser com esse Zeppelin”. Pouco depois, antes da eclosão da segunda guerra mundial, houve o trágico acidente com o dirigível na Europa. “Toda vez que eu vejo um céu azul, sem nada, me vem a imagem do Zeppelin e do meu pai.” Depois do fim da guerra, Esther foi para a Europa em um navio italiano chamado Julio Cesar. “Pra mim o céu não é aquele azul clarinho, aquele azul bebê, nem aquele azul escuro. É aquele azul vivo, aquele tom meio arroxeado, uma coisa que pra mim é linda”, conta Angela. “E por muito tempo eu quis ter um vestido desse tom de azul. E eu nunca consegui achar. Até que, na minha formatura – acho que de colegial – , eu achei uma fazenda na cor e fiz o vestido, lógico.” Angela repetiu a cor na cerimônia de casamento do filho.

A carioca Beth, apesar de gostar do céu azul e do mar, traz outra imagem: a da casa onde morou quando teve que se mudar para Pindaré-Mirim, no interior do Maranhão.  Com a fachada branca e janelas azuis, a construção parecia muito com a moradia que a menina imaginava ter ao sair da casa dos pais. “Eu olhava aquela casa, que era tão feia dentro, só eu sei, mas ela era bonita por fora. E ela foi me dando força pra aguentar aquele tempo. Embora sendo tão diferente de onde eu vivia, eu fui muito feliz lá.”  Para Socorro, a maior lembrança é de uma cena intrigante de sua infância, durante visitas à fazenda da família no sertão. Sob um “sol quente de pelar o juízo”, havia sempre uma caminhada de cerca de 40, 50 minutos, passando pelo principal açude da região, que estava seco. “Tinha uma pocinha d'água – imaginem uma bacia pequena naquela imensidão de rachaduras no chão – e tinha uma garça enfiada lá. E sempre que a gente voltava e ia pra fazenda aquela garça tava naquele mesmo lugar.” Socorro ficava pensando se e porque aquela garça era mais inteligente do que as outras aves, já que a paisagem era repleta de carcaças de pássaros. “E eu sempre perguntava pra minha vó porque que aquela garça conseguia viver ali. E ela respondia que não sabia, só sabia que ela estava sempre ali.”

Reunião do projeto Estação Memória

 

Ivete explica que no início é muito comum que os participantes acreditem não possuir memórias interessantes. Mas ao longo das oficinas essa percepção muda. “Quando você tem uma comunidade de escuta que é sensível, que é respeitosa, em que há trocas entre os participantes, primeiro há um processo de confiabilidade.” Os estímulos do grupo atribuem sentido ao lembrar e ao contar e, como resultado, todos se sentem cada vez mais à vontade para compartilhar suas memórias. Cada memória, por sua vez, acaba funcionando como um gatilho positivo para os demais fazerem o mesmo movimento de resgate das lembranças. Essas características ajudam a explicar porque o grupo do Estação Memória não é renovado na mesma lógica das turmas de um curso regular, como em outras atividades do Programa USP 60+: “pra você constituir um grupo que vá solidificando, que vá adensando essas memórias e que seja responsável por acolher os novos, você precisa ter um quadro que precisa ser acolhedor e receptivo, porque aí a dinâmica não se perde e você não começa do zero sempre”, diz a docente. Novos membros são incluídos conforme ocorrem perdas “naturais” no grupo, ocasionadas por dificuldades de deslocamento, problemas de saúde ou mortes.

Zezé fala sobre o quintal da sua casa de infância, no Butantã, cheio de árvores frutíferas e alcachofras plantadas por seu pai. “Toda vez que eu lembro de lá, eu vivo de novo aqueles momentos gostosos, eu brinco, eu lembro muito que eu tinha uma ligação com meu pai. Ele ficava na escada, onde tinha a parreira de uva, e eu ficava com uma cestinha embaixo, recolhendo as uvas que ele colhia.” Nessa quarentena, Zezé tem brincado muito com a neta de 8 anos, mesmo à distância. Numa dessas brincadeiras, a menina e a avó desenharam memórias. “Ela falou: eu quero um desenho do passado seu. E eu fiz esse desenho, dessa casa do Butantã”. Mariana se surpreende ao lembrar do quintal da sua professora de piano, Anita, no bairro do Belém.

“Eu estudava piano e adorava depois da aula ir pro quintal pegar fruta nas árvores: a pitanga e a goiaba. E aquele quintal grande, todo cheio de árvores, veio na minha mente. Eu nem me lembrava mais. A Estação Memória faz a gente se lembrar de cada coisa, viu?”

 

"Transmissão de herança simbólica"

O intercâmbio de memórias proporcionado pelos encontros entre os idosos é o início de um percurso de redescobertas. “Todo mundo que tá vivo tá tendo uma vivência. A experiência é justamente a reelaboração desta vivência a partir da linguagem. E isso é dinâmico. E dá uma margem para que a própria experiência possa ser reelaborada”, afirma Ivete. Essa reelaboração se dá tanto pela organização dos relatos em forma de textos e outros suportes, como também pelas oficinas intergeracionais, quando os idosos realizam atividades com estudantes do ensino fundamental. A docente relata que em uma dessas oficinas os grupos trocaram sugestões de filmes, “meio torcendo o nariz”, e no final certos preconceitos foram superados. Os jovens amaram os filmes de Charles Chaplin e os idosos valorizaram as perspectivas dos jovens e do futuro a partir da indicação dos filmes. “É um rever a vida, rever o cotidiano, rever as relações em todas as esferas. Não é afirmar o que o sujeito viveu. é pegar o que ele viveu e reelaborar a partir de uma nova ordem, depurando o que vale ficar e o que não merece permanecer, dentro disso que é o estar no seu tempo, independentemente da idade que o sujeito tem”. Essa perspectiva reflete conceitos do filósofo alemão Walter Benjamin que sempre estiveram na base do Estação Memória, segundo a professora.

Uma das veteranas e colaboradora do projeto, Toninha, se empolga e apresenta várias imagens. Ela conta como gostava de conversar com as flores do jardim da casa de sua tia. “Era um jardim muito grande, em aclive, com goiabeiras, uma videira muito bonita, muitos gerânios, muitos lírios...” Outra lembrança marcante vem do tempo que passou no colégio de freiras: “é um triângulo, e dentro tem um olho, que é o olho de Deus, e nesse triângulo tava escrito Deus te Vê. Só que eu morria de medo desse olho e desse Deus que tava vendo em todo lugar e que sabia tudo que a gente tava fazendo de certo e de errado, né?”

“Eu fiquei tão emocionada com a beleza daquilo que eu chorei. Eu nunca tinha chorado de ver coisa bonita. Eu sempre associei o choro a coisa mais triste”.

Marilene se comoveu com a nave da Catedral de Westminster, durante uma viagem que fez para visitar o filho, estudante em Londres. A morte da princesa Diana era recente e ainda havia muitas flores no local. Marilene conheceu igrejas ainda mais bonitas depois, porém esse primeiro encontro é até hoje o mais marcante. É um sentimento parecido com o de Ivone ao ver o teto da Capela Sistina e a Pietá: “Fiquei sentada um tempão em silêncio ali em volta, olhando aquele teto, aquelas pinturas, o dedo de Deus querendo tocar o dedo do homem, aquela imagem muito forte... Na Pietá eu chorei. Sempre achei que seria maravilhosa, mas ver pessoalmente aquele mármore branco e tão bem esculpido com uma imagem daquelas é muito emocionante”. Lilia, fã do filme A Noviça Rebelde, também guarda com carinho as memórias de uma viagem que ganhou dos avós aos 17 anos: “nós subimos o monte Pilatos, que é na Suíça, nos Alpes. Peguei o teleférico e subindo, subindo, subindo, olhava pra baixo... Aquelas casinhas pareciam que estavam penduradas na montanha, e aquele verde, tudo isso me remetia pro tal do filme que eu tinha assistido e que me emocionava.” Ela comprou um postal para a mãe, onde escreveu que “aquele país era feito de sonho”.

As oficinas intergeracionais acontecem prioritariamente em escolas públicas ou gratuitas (ligadas à fundações) e projetos comunitários, ainda que não haja restrição para outros tipos de instituição de ensino. Há mais de uma década no Estação Memória, o Centro Educacional Fundação Salvador Arena, em São Bernardo do Campo, já incluiu os encontros no projeto político-pedagógico da escola. O contato entre realidades tão distintas exige um período de preparação para que seja bem-sucedido, e para isso os educadores da escola se reúnem anualmente com Ivete para discutir possíveis temas e metodologias. Um dos métodos é apresentar aos jovens os relatos escritos antes do encontro presencial com os idosos. “Quando você põe pessoas de faixas etárias e de contextos sócio-culturais, históricos e econômicos diferentes, você precisa criar patamares mais ou menos comuns, mais ou menos equilibrados, para que esse diálogo cultural efetivamente aconteça”, explica a docente.

Outro papel pedagógico importante dessas oficinas é aprimorar, nos jovens, a capacidade de trabalhar com distintas fontes e tipos de informação. “O grupo de velhos se constitui como uma espécie de biblioteca oral para as pesquisas desses jovens. O idoso é uma fonte informacional”. A partir do contato com o Estação Memória, “Esses meninos aprendem a cotejar a informação científica com a informação da experiência, a validar as fontes, a estabelecer distanciamentos entre fatos e representação desses fatos, porque o velho, dentro da experiência dele, não tá preocupado se o negócio aconteceu em 1931, 1932, 1933. Ele acha que é 1933 e ele vai falar que é isso.” Além disso, o projeto traz ainda benefícios para as relações interpessoais dos jovens, que se apropriam das formas de lidar com os idosos.

Apesar de ter conhecido diversas paisagens e monumentos – as cataratas do Iguaçu e do Niagara, o teatro de Sidney, as pirâmides do Egito e até o Taj Mahal – a imagem cravada na memória de Iris é a do nascimento de seus cinco filhos:

“A emoção de ver aquele pedacinho de gente, o primeiro choro. A alegria de sentir uma criança inteira”. Ela também pôde testemunhar o nascimento de todos os netos e dos três bisnetos. “Foi emoção demais. É sentir que agora estou idosa mesmo”.

58 anos depois, Cidinha ainda fica com a voz embargada ao lembrar do nascimento do primeiro dos três filhos, o único parto que foi natural. Rodeada por médicos e enfermeiras, recebeu muito apoio e estímulo de todos. Para Ruth Levin, o ritual de passagem do filho mais velho para a vida adulta é a imagem mais marcante: “vê-lo lá em cima no altar, na sinagoga que eu queria, com apenas 13 anos de idade (embora ele fosse enorme, muito alto) rezando e com toda aquela responsabilidade – porque ele sabia que a partir dali ele seria um homem adulto e que todo mundo daria mais importância pra ele pelo fato dele ter realizado o Bar Mitzvah.” Viúvo jovem, Henrique precisou criar as filhas sozinho. Sua memória mais marcante é de quando a filha mais velha se formou engenheira de produção pela USP. Ali ele sentiu que todas as dificuldades valeram a pena. “Eu me emociono, porque é um sacrifício compensador”.

Pandemia e pós-pandemia

A pandemia impediu a realização das oficinas com os jovens até agora, mas apesar dessa perda os participantes conseguem reconhecer uma série de ganhos que a experiência virtual do Estação Memória já proporcionou. Muitos reservam a quarta-feira há anos para o projeto e, para os que estão sozinhos em casa, há um motivo especial para se programar e até se arrumar, como Esther afirma orgulhosa. Já Ângela, que mora com a família, espera ansiosamente cada encontro porque é um momento para si mesma. “Os meus filhos mesmos dizem: não é mais Estação Memória. É Estação Melhora. Porque eu melhorei!”, afirma Cidinha. Outros, como Ruth, voltaram para o grupo depois de muito tempo sem participar, por morarem longe da USP. Marilene e Elzira têm uma impressão maior de intimidade. “[ao] ver a cara de cada um, ver o ambiente em que cada um está vivendo, parece que ficamos mais próximos do que quando a gente estava lá na sala, sentado na cadeira. Apesar de não ter café e lanche.” Para Toninha, ver e ouvir os colegas permite sentir mais emoção: “é de uma riqueza, de um alimento pra alma, pro coração, pra vida.”

“É um platô com um gramado muito lindo, com uma única árvore muito frondosa e de lá eu avisto aquele céu muito azul e o mar." Bete nunca pisou nesse lugar. É a imagem de um sonho que ela teve há muito tempo, e que ela não esquece porque sempre a acalma. Enquanto a reunião avança pela tarde, sua quase xará, Beth, se dedica ao bordado enquanto escuta as lembranças dos colegas. Lilia, também atenta a tudo, costura uma simpática girafa de pelúcia. No chat, os membros do grupo trocam sugestões de livros e pinturas. Mariana promete que depois mandará um texto atribuído à poeta Adélia Prado: O que a Memória Ama Fica Eterno.

Para a bolsista Juliana, participar do Estação Memória tem importância tanto acadêmica quanto emocional. Responsável pelo relatório dos encontros, ela afirma que adora escrever tudo o que os participantes dizem, e acredita que as duas modalidades de reunião – virtual e presencial – são muito vantajosas para o projeto. Daniel acredita que a produção de material audiovisual a partir dos encontros on-line amplia as possibilidades de pesquisa. “A essência mantém-se, mas muda o que a gente tá gerando”. Ivete concorda, e afirma que essa fase tecnológica do Estação Memória deve continuar. A perspectiva é estudar uma metodologia que permita a manutenção dos dois formatos.

Perrotti afirma que o distanciamento social imposto pela covid-19 reforçou “a importância do outro para nós existirmos, para nós sermos nós mesmos. Nos tirando, a pandemia nos deu.” Ao refletir sobre o “trânsito de experiências” que o Estação Memória proporciona, o professor se pergunta quanto aos desafios do período pós-pandemia.“Como refazer e ampliar essas possibilidades?” Nesse futuro ainda nebuloso, a única certeza parece começar na frase de Mariá, falecida participante do projeto, naquela noite há mais de três décadas: “a coisa mais importante do mundo é esse encontro.”