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HQ no Brasil: “dá trabalho, mas o trabalho não dá dinheiro”

Obra que fala sobre o trabalho dos quadrinistas terá lançamento na 7ª Jornada de HQs da ECA, que acontece em agosto

Comunidade

Muito populares na infância, os gibis da Turma da Mônica de Maurício de Souza já chegaram a mais de 1 bilhão de vendas. Outros nomes também se destacam. Marcelo D’Salete, por exemplo, venceu o Eisner, maior prêmio dos quadrinhos norte-americanos, em 2018, por sua obra Cumbe. Além de D’Salete, nomes como Gabriel Bá, Fábio Moon, Rafael Albuquerque, Rafael Grampá e Adriana Melo também já foram premiados. 

Fotografia do auditório sede da 5ª Jornada. Na imagem pessoas estão sentadas nos dois lados do auditório enquanto olham para uma apresentação que não aparece na foto. A maioria das cadeiras está ocupada.
5as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da USP, realizadas em 2018. As Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos acontecem desde 2011. O congresso tem como objetivo “servir de ponto focal para as pesquisas sobre quadrinhos produzidas no país e no exterior”. Imagem: Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos/Facebook

Mesmo que esses nomes tenham sido reconhecidos, quando se pensa em quadrinhos, o foco se volta para a obra. Mas e quem produz HQs?

No livro Quadrinhos: profissão e trabalho criativo, Gledson Ribeiro de Oliveira adentra o mundo das HQs e direciona sua pesquisa para os quadrinistas, profissionais que dão vida a essa produção visual. A obra será lançada nas 7as. Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da USP que ocorrerão entre 22 e 25 de agosto de 2023. 

 

Viver e fazer quadrinho

Gledson é professor de Sociologia na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e historiador. Além de ser leitor de HQs há muito tempo, ele também as coleciona. Sua primeira coleção de revistas em quadrinhos começou a ser montada em 1984. 

O interesse pelo assunto fez com que o pesquisador trouxesse o tema para o meio acadêmico. O livro é resultado de seu projeto de pós-doutorado na ECA, antes intitulado Quadrinhos: trabalho criativo e profissão, supervisionado pelo professor Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, do Departamento de Informação e Cultura (CBD).

 Foto de um homem de pele branca, olho escuro, cabelo curto e escuro e barba branca. Ele veste uma camiseta branca e calça jeans escura. Ele está sentado em um banco com as duas mãos apoiadas na perna. Atrás dele existem várias estantes com  livros e revistas.
Gledson Ribeiro de Oliveira, pesquisador da Unilab. Imagem: acervo pessoal.

Gledson explica que quando se estuda os quadrinhos, em muitos casos, a discussão gira em torno da semiologia dos quadrinhos e da estrutura da linguagem. Ele aponta que essas abordagens são importantes, mas sentiu falta de discutir outros elementos do gênero. A partir da vontade de trabalhar em um tema novo e da influência sindical em sua vida, o professor direcionou sua pesquisa para os trabalhadores dos quadrinhos. 

“A ideia do livro é estudar e entender como é viver e fazer quadrinhos. Não só aqui no Brasil como em outros mercados, especificamente no mercado norte-americano”, explica.

Para produzir a obra, Gledson entrevistou 23 pessoas inseridas no contexto dos quadrinhos. Como há pouca bibliografia sobre o assunto e inexistem dados sobre a profissão no Brasil, o professor usou o método “bola de neve” na pesquisa, em que cada entrevistado indicava uma outra fonte do meio. O resultado dessa abordagem “é um texto com múltiplas referências empíricas, compondo um substantivo, não exaustivo, mosaico do mundo do trabalho com quadrinhos”, pontua ele no livro.

 

Quadrinista: informalidade e trabalho intermitente

Depois de conseguir ter um panorama geral do que é viver de quadrinhos no Brasil e nos Estados Unidos, Gledson afirma ter chegado ao achado principal de sua pesquisa: “seja aqui, seja nos Estados Unidos, trabalhar com quadrinhos é sinônimo de informalidade e de trabalho intermitente”

Com a exceção de casos em que os profissionais têm vínculo empregatício com jornais ou editoras, os trabalhadores dos quadrinhos não têm acesso a direitos trabalhistas. Sem direito a férias, ao décimo terceiro e ao descanso semanal, os quadrinistas chegam a trabalhar cerca de 12 horas diárias ou mais.

“Você não tem a estabilidade de um trabalho negociado [que ocorre nos] EUA ou de um contrato celetista aqui no Brasil que um trabalhador teria. Você vive de projeto a projeto: tem um projeto, você o executa — que nem sempre paga o seu trabalho, só a sua publicação — termina ele e não sabe qual vai ser o próximo, nem quanto será”. 

Capa da HQ Nem Todo Robô. Na imagem há uma mesa de jantar com algumas pessoas. Três personagens olham para frente, enquanto os outros, que aparentam ser holográficos, olham para diferentes lados. No meio da mesa existe uma luz azul que os reflete. Uma personagem está levantada e segura uma bandeja com uma ave morta. Atrás dela há um robô cinza.
Mike Deodato ganhou o prêmio Eisner na categoria Melhor Publicação de Humor de 2022 por Nem Todo Robô. O quadrinista já ilustrou sagas da Marvel, como Homem-Aranha, Hulk e Elektra, e da DC Comics, como Mulher Maravilha. Imagem: Reprodução/Comix Zone
 

 

Mercado nacional e norte-americano 

Mesmo que a informalidade e a intermitência seja um contexto compartilhado pelos  mercados brasileiro e norte americano, existem algumas diferenças entre os dois países. 

Segundo Gledson, como nos EUA cada estado pode ter uma regulamentação trabalhista diferente e não há uma legislação específica, existe a possibilidade dos profissionais negociarem acordos diretamente com uma empresa, diferente do Brasil, que funciona com base na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). 

Quanto aos ganhos, o pesquisador indica que trabalhar no mercado norte americano compensa mais  do que no Brasil. “Você está convertendo o dólar em reais. Os ganhos variam entre 250 até 1.300, 1.400 dólares por página desenhada. É uma variação absurda”, explica. No país, exceto o caso do letreiramento — etapa em que elementos linguísticos são adicionados à página, como balões de fala e onomatopeias — paga-se 150, 200 reais pela página. 

Apesar do rendimento ser maior nos EUA, o ritmo de produção é intenso. Como não há como se aposentar, os quadrinistas devem trabalhar no mesmo ritmo, independente da idade, para ganhar dinheiro e garantir a sua sobrevivência. “Você tem que trabalhar para sempre ou então ter uma coleção de propriedades intelectuais que possam garantir uma certa renda”, explica.

 

HQ no Brasil: “dá trabalho, mas o trabalho não dá dinheiro”

“Há um certo desprestígio em relação a quem trabalha com a arte gráfica sequencial no Brasil, apesar de toda a notoriedade que alguns nomes possuem. Fica sempre aquela impressão de que ‘ah, você faz quadrinhos, mas qual é a sua outra profissão? Vai viver só disso?’ ”. 

Segundo Gledson, a resposta para a segunda pergunta é que a maioria não consegue. Pelos relatos que ouviu, o pesquisador percebeu que para conseguir fazer quadrinhos, a maior parte das pessoas tem uma vida profissional dupla, e até tripla

No livro, ele indica nomes de profissionais, como Lilian Mitsunaga e Geraldo Borges, que conseguiram deixar suas antigas profissões pelos quadrinhos. Lilian se formou em Arquitetura e hoje atua apenas como letrista. Já Geraldo é formado em Engenharia Civil, mas atualmente trabalha como desenhista. 

Apesar de casos como esses, muitas pessoas não conseguem a independência que precisam para se tornarem somente quadrinistas. “Tem gente que continua trabalhando com outra coisa e no tempo livre faz quadrinho. Tem gente que desiste por causa disso, porque dá muito trabalho, mas o trabalho não dá dinheiro”. 

Além de desvalorizar seus profissionais, o mercado nacional de quadrinhos, quando comparado ao exterior, é fraco em relação à demanda. Gledson explica que as pessoas não têm conhecimento das HQs do país. A maioria delas lê quadrinhos na infância e adolescência, depois disso se distanciam. “O brasileiro lê pouco quadrinho brasileiro”, aponta. 

 

Frente e verso da capa da revista em quadrinho Cumbe. Na imagem, que conta com as cores marrom, branco, azul e bege, um personagem masculino de cabelo crespo e bermuda está abaixado ao lado de uma árvore e outras plantas na parte mais baixa de um terreno. Ele segura uma lança.
Cumbe, de Marcelo d’Salete, apresenta novas possibilidades de leitura sobre o passado e trata da escravidão ao mostrar histórias de resistência protagonizadas pelos africanos escravizados. Imagem: Reprodução

 

Ser quadrinista e a autoria

Entre outras lacunas, a falta de regulação da profissão, a pequena demanda do mercado e o consequente desprestígio, afetam a forma como os próprios quadrinistas se enxergam enquanto profissionais.

Gledson aponta que muitos não se definem como quadrinistas e se rotulam apenas como artistas ou como profissões reconhecidas como formais. 

No contexto das definições, a discussão se torna ainda mais complexa quando a pergunta ‘quem é o autor dessa HQ?’ é feita. 

O pesquisador conta que há uma reclamação recorrente nos relatos que ouviu: o peso autoral que se dá ao roteirista dos quadrinhos em comparação aos profissionais que exerceram as demais funções na produção das HQs. Para dar forma a uma arte sequencial, além do roteirista, a participação de coloristas, arte-finalistas, letristas e desenhistas é fundamental. 

“Eu ouvi várias queixas. A pessoa se mata para fazer uma arte gráfica de um quadrinho e as pessoas só entrevistam o roteirista. Isso está incomodando. As pessoas querem ser reconhecidas também como narradoras, como autoras, não só como ilustradoras, que às vezes as revistas as colocam”.

 

O caminho para a notoriedade

 

“Tal como a pintura, a escultura, a fotografia e o cinema, ela [arte sequencial] também funciona à base de um sistema de relações recíprocas de pessoas e instituições que selecionam e consagram artistas/roteiristas e obras”. 

Gledson Ribeiro de Oliveira, pesquisador, professor e autor do livro Quadrinhos: profissão e trabalho criativo.

 

Para ser um quadrinista reconhecido, ganhar sucesso e dinheiro, os profissionais devem passar por algumas etapas. O professor usa como base a ideia dos quatro círculos de reconhecimento do historiador da arte inglês Alan Bowness. São eles: pares/artistas, marchands e colecionadores especialistas e o grande público. 

Quadrinhos no Ceará

Antes de Quadrinhos: profissão e trabalho criativo, Gledson já havia escrito sobre o universo das HQs. Em seu primeiro livro sobre o assunto, Quadrinhos no Ceará: Imprensa, Alternativos e Censura, ele fala dos quadrinhos no estado do Nordeste desde seu surgimento nos jornais ilustrados, não como quadrinhos propriamente ditos, mas como ilustrações baseadas em humor gráfico.

A obra foi publicada pela editora Marca de Fantasia, atualmente parte do Núcleo de Artes e Mídias Digitais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e criada pelo professor de comunicação Henrique Magalhães da UFPB.

Esse processo, no entanto, é difícil. Nem todos os quadrinistas conseguem passar pelos quatros círculos e alcançar notoriedade. Enquanto poucos nomes conseguem se consagrar, tornando-se referência, outros atuam nas sombras, sem ter, em alguns casos, os seus nomes em créditos das obras de que fazem parte. 

 

Projetos futuros

Além do livro que será lançado, Gledson já tem um projeto firmado. Ele vai produzir um material didático com tiras selecionadas para professores do ensino fundamental na área de sociologia. 

Para o futuro, o pesquisador pretende continuar com sua pesquisa na área dos quadrinhos, dessa vez expandindo seu escopo para os quadrinistas na Europa e os quadrinistas brasileiros que atuam no mercado japonês

 

 

 


Imagem de capa: reprodução/Pexels