Da ECA à Hochschule de Hamburgo: ex-aluno é agora professor de regência
Luiz de Godoy, novo integrante do Departamento de Música Sacra, é o terceiro docente brasileiro na instituição alemã
Luiz de Godoy acaba de ser nomeado professor de regência orquestral do Departamento de Música Sacra da Escola Superior de Música e Teatro de Hamburgo, uma das maiores universidades da Alemanha. O ex-aluno do Departamento de Música (CMU) da ECA é o terceiro professor brasileiro na Instituição, precedido por Yara Bernette e Marco Antonio de Almeida.
Aos 35 anos, o pianista assume uma cadeira na instituição alemã. Para ele, assumir esse cargo significa firmar um compromisso com uma postura pedagógica socialmente comprometida. “É bom ter a possibilidade de interferir no sistema por dentro dele”, afirma. Luiz conta já ter ouvido de um professor no Brasil que ele não tinha futuro no palco, e acredita que comentários como esse exibem o despreparo pedagógico dos professores de música, que executam a arte com maestria, mas nem sempre estão bem preparados para ensinar.
Quanto às expectativas para o cargo, Luiz demonstra animação: “o ano letivo aqui começou agora em outubro e tem sido uma experiência muito enriquecedora”. O Departamento de Música Sacra da Hochschule é bastante reconhecido e está sediado na cidade de Hamburgo, que foi visitada por Bach durante seus estudos.
O professor reconhece que o curso de música ainda é bastante restrito a poucas pessoas, “tanto pela necessidade de uma formação prévia à graduação, quanto pela dedicação em tempo integral requerida”, mas vê espaço para a atuação docente. “Dando apenas uma matéria, a de regência orquestral, não posso fazer muito, mas espero fazer tudo o que estiver ao meu alcance para valorizar a vontade e o empenho dos alunos, neutralizando como possível a influência de suas origens sociais — a partir do reconhecimento delas, claro, e não da sua negação”.
Trajetória profissional
Os estudos formais de música de Luiz tiveram início na Escola Municipal de Música de São Paulo, onde participou das aulas de Renato Figueiredo, ex-aluno do CMU. Quando ingressou no bacharelado em piano na ECA, em 2006, era morador de Mogi das Cruzes e enfrentava uma viagem diária nos trilhos dos trens até a Universidade. Seu primeiro contato com o idioma alemão ocorreu num curso de idiomas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH). Em 2009, foi bolsista pelo programa de bolsas Fulbright, patrocinado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, e, a convite do Departamento, visitou o país para estudar e se apresentar em Boston, Nova Iorque, Washington e Tanglewood.
Após graduar-se em piano pela ECA, Luiz concluiu seu mestrado em piano solo em Castelo Branco, Portugal, e em Colônia, Alemanha. Foi vencedor do Prêmio Erwin Ortner como destaque da música coral austríaca (2016) e do Prêmio de Honra da Academia de Música de Viena, em 2019.
Em 2013, foi admitido no Diplomstudium, curso de pós-graduação que garante o grau de mestre, em regência orquestral e regência coral na Universidade de Música e Artes Performáticas de Viena. Mudou-se para Hamburgo em 2019 para trabalhar na Ópera Estatal com o “objetivo de criar um departamento de coros infanto-juvenis e dirigir produções de ópera”.
Em 2021, Luiz dirigiu um concerto junto à Orquestra da NDR-Elbphillarmonie e se apresentou ao Rei Charles da Inglaterra, desde então o pianista e regente é diretor artístico dos Meninos Cantores de Hamburgo. Em 2022, realizou uma turnê em São Paulo com a Orquestra Sinfônica da USP (Osusp). Atualmente, trabalha com Kent Nagano, renomado regente estadunidense, em uma turnê por diversos países, iniciada no palco do Carnegie Hall de Nova Iorque em abril de 2023.
Música no Brasil e na Europa: diferenças estruturais, estigmas e o olhar não-europeu
Para Luiz, a vivência na Alemanha evidencia as diferenças estruturais entre o país europeu e o Brasil. Ser músico em cada um deles é “absolutamente diferente”, segundo o docente, e tudo começa na educação básica. “Em Hamburgo, existem dois jardins da infância públicos que, já para esta faixa etária, são especializados em música. Eles ainda dividem as classes entre classes vocais e classes instrumentais, de acordo com os interesses das crianças”. Além disso, há escolas de ensino médio especializadas em música.
A diferença entre os países também é notada pelo enaltecimento geralmente feito à música produzida no continente europeu, que seria “supostamente mais educada e culta”, segundo o músico, e isso exige uma postura de luta por reconhecimento por parte dos músicos não europeus.
Comprometido com a luta antirracista na música clássica, Luiz acredita que, enquanto artista negro, isso não é uma escolha, e sim uma necessidade. Ele trabalha com poucos colegas não-brancos e vê que é impossível negar a existência de barreiras impostas pelo racismo no meio da música de concerto e da ópera. “Aqui é comum que muita gente ainda use o fato de ‘se tratar de música europeia’ para deslegitimar a nossa atuação no campo, como se não fosse natural que nós fizéssemos essa música”. Ele até já ouviu que os brasileiros fazem uma “apropriação cultural” da música europeia, mas discorda: “um povo colonizado não tem a escolha da apropriação, já que foi obrigado a abdicar das próprias culturas originárias e ‘mimificar’, como diz o autor indiano Homi Baba, a cultura do dominador”.
No Brasil, os enfrentamentos também não são poucos. A visão de que os músicos clássicos são “colonizados” também é frequente, mas Luiz discorda: “a gente vai se tirar o direito de fazer algo que aprendemos a gostar, num ciclo de castração perpétua?”, e questiona: “a arte europeia já não é uma arte nossa?”
Como um estrangeiro fazendo música clássica no berço desta arte, o pianista e regente sabe, no entanto, que suas origens raciais e culturais jamais podem ser ignoradas: “ou a gente escolhe fingir que é europeu ou a gente permanece brasileiro. No meu caso, negro, não tenho outra opção - e jamais desejaria outra coisa”.
Imagem de capa: Arquivo pessoal/ Luiz de Godoy