CMU | Departamento de Música



Práticas sonoras e escuta descolonizada são tema de livro

Ex-discente da ECA é autor de capítulo que analisa a indústria musical e a criação de “regimes de escuta”

Vida acadêmica

Postcolonial Repercussions On Sound Ontologies and Decolonised Listening (Repercussões pós-coloniais nas ontologias sonoras e na escuta descolonizada) é mais um dos livros da série Repercussões Pós-Coloniais da editora alemã Transcript. Na obra, autores espalhados pelo mundo expõem histórias e conhecimentos sonoros com o objetivo de refletir se o som pode ser percebido independentemente de sua dimensão social ou se está sempre inserido em uma rede discursiva, e ainda abordam oportunidades, perspectivas e a (im)possibilidade de uma escuta descolonizada.

Um dos textos é de Henrique Rocha de Souza Lima, participante do Núcleo de Pesquisas em Sonologia (NuSom), do Departamento de Música (CMU), e doutor em Artes pela ECA. Em seu artigo (Post) Colonial Streaming: The Social Reproduction of Listening and Deafness in the Anthropocene (Streaming (pós) colonial: A reprodução social da escuta e da surdez no Antropoceno), Henrique discorre sobre o conceito de “regime de escuta” e sobre um tipo particular de surdez provocado por esse regime. Além disso, o autor levanta discussões a respeito do papel da indústria da música no setor cultural e na formação dos hábitos de consumo dos ouvintes.

 

A produção da escuta e da surdez
 

Em seu capítulo, cujo título poderia ser traduzido como  Streaming (Pós) Colonial: A Reprodução Social da Escuta e da Surdez no Antropoceno, Henrique analisa o ecossistema gerado entre mediações da indústria musical e usuários de plataformas de streaming. De acordo com sua tese, “o discurso sobre a escuta é um componente orgânico da indústria da música.”

Esse discurso, ainda que varie quanto à forma e conteúdo, sempre apresenta dois elementos, segundo o autor. Um deles é a “prescrição de uma conduta ideal,  que às vezes se mostra sob a forma de um tipo de dever, outras sob a forma de uma possibilidade irrestrita de gozo.” Essas instruções propagam modelos de consumo e resultam no que o pesquisador chama de “regime de escuta”. Ou seja,  um conjunto de formas pré-determinadas de interação com o conteúdo musical, que acaba por uniformizar as experiências dos usuários de streaming.

Foto das portas de vidro que separam os trilhos do metrô dos passageiros na plataforma de embarque. Em cada porta está exposta uma propaganda. À esquerda há uma arte com fundo verde-limão que cita a música “Fracasso” e exibe a mesma foto da cantora Pitty repetida 5 vezes. Pitty é branca, tem cabelos longos vermelhos e usa roupas pretas). À direita, a divulgação menciona a canção “Waka Waka”, da Shakira, com 3 fotos repetidas da artista, que é branca, tem longos cabelos loiros e veste preto e amarelo.
Segundo Henrique, a publicidade é uma das formas discursivas que determina o regime de escuta. Foto: reprodução/Propmark

Já o segundo elemento presente nos discursos é o chamado “ponto surdo” -  conteúdo audível que permanece sistematicamente fora do espectro de atenção devido ao regime de escuta que o autor entende como majoritário. De acordo com Henrique, ainda que haja diversas possibilidades disponíveis, uma grande parte da produção musical escapa do alcance dos usuários devido à padronização de seus hábitos de consumo.

O pesquisador toma emprestado das Ciências Biológicas o termo Antropoceno para refletir sobre a agência dos seres humanos e os fatores que a determinam na atualidade. Ele usa o neologismo “capitaloceno”, presente em teorias filosóficas contemporâneas, para enfatizar como as escolhas aparentemente espontâneas dos indivíduos podem ser resultado de determinantes mercadológicos. 

No caso específico do consumo de música, um exemplo é a ênfase com que os algoritmos das plataformas de streaming sugerem lançamentos e grandes hits em detrimento de músicas menos recentes e menos conhecidas, especialmente de pequenos artistas locais. “O regime de escuta produzido pela indústria fonográfica com base no streaming organiza a auralidade [aquilo que é captado pelo ouvido] de modo que a paisagem local esteja sempre no ponto surdo”, afirma Henrique. É por isso, segundo ele, que há uma constante tensão entre regimes de escuta e as práticas de descolonização, cujo intuito é questionar a hegemonia de Europa e Estados Unidos como referências da cultura ocidental.

Os algoritmos demonstram o papel de tecnologias como o Big Data e a inteligência artificial na formação da cultura de escuta. “Essas tecnologias influenciam o campo de pesquisa do som porque elas configuram a materialidade e a medialidade da experiência sonora atual. Isto foi intensificado com a pandemia da covid-19.”

 

Artigo do pesquisador impulsionou a coletânea

 

Após utilizarem um texto desenvolvido em sua tese de doutorado como referência para a chamada de trabalhos do livro, os editores da antologia convidaram Henrique a participar da obra. Motivado pelo desafio, ele aceitou elaborar um dos capítulos. “O que fiz neste projeto foi desenvolver e colocar em discussão teses que eu elaborei ao longo da pesquisa de doutorado, escutando e conversando com professores e colegas da ECA, dentre os quais destaco os professores Silvio Ferraz, Fernando Iazzetta e Rogério Costa”, conta.

Foto de um painel exposto em um corredor de uma estação de metrô. O painel é verde e tem, à esquerda e em letras pretas, o texto “ ‘50 reais’ foi ouvida mais de 50 milhões de vezes desde 2016. É numerologia que chama?”. À direita, aparecem 5 vezes a mesma foto da cantora da música, Naiara Azevedo, que é branca, tem cabelos longos e lisos escuros, usa óculos de sol, veste uma roupa preta e usa batom vermelho. Ela sorri, coloca uma mão atrás da cabeça e com a outra acena para a câmera. O logo do Spotify aparece acima das fotos.
A campanha analisada por Henrique, exibida em estações da Linha 4 - Amarela do metrô de São Paulo no final de 2019, propunha que os passageiros relembrassem grandes hits que marcaram a década. Foto: reprodução/Propmark

Henrique explica que, em seu texto, evitou abordar questões brasileiras como um assunto exótico a ser apreciado por um público estrangeiro. Ao invés disso, procurou “articular uma problemática atual de âmbito global” - que seria o domínio da esfera de produção e consumo de som por parte de empresas de dados, acompanhado do domínio sobre o discurso a respeito da escuta. Para isso, o ponto de partida foi um estudo de caso local, uma campanha publicitária que a empresa Spotify instalou numa linha do metrô de São Paulo.

Aliás, o pesquisador destaca que a grande maioria dos estudos de caso estão fora do eixo Europa-Estados Unidos. Para ele, a coletânea de textos apresenta uma perspectiva bastante variada do campo. “Acredito que ela esteja bem equilibrada no que diz respeito à variedade de abordagens, pois ali há textos centrados em questões raciais, de gênero, de comunidades indígenas, através das quais a abordagem de práticas sonoras oscila para dentro e fora de espaços institucionais.”
 
O livro, que está disponível somente em inglês, pode ser comprado no site da editora em versão impressa ou digital.

 

 


Imagem de capa: reprodução/ Propmark