CTR | Departamento de Cinema, Rádio e Televisão



Pesquisadores do LabArteMídia desenvolvem plataforma para cerimoniais de despedida e memoriais on-line

Projeto Transcender aproxima amigos e familiares que perderam um ente querido, superando as barreiras impostas pela distância física

Comunidade
Montagem com cerca de 20 fotos em molduras circulares para exemplificar o funcionamento da plataforma. Ao centro, destaca-se uma mulher negra, a cantora Aretha Franklin, e suas datas de nascimento e morte. O fundo é uma imagem de céu sobre um oceano coberto por um filtro dourado. As molduras das fotos dos convidados têm cores variadas.
Exemplo da função de videoconferência do Projeto Transcender. Com design circular e janelas de vídeo móveis, a plataforma é customizável. Imagem: Projeto Transcender/ LabArteMídia. 

Nessa semana o mundo atingiu a triste marca de 1 milhão de mortos pela covid-19. Mais de seis meses após a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhecer a pandemia, a crise sanitária e seus efeitos na economia e na saúde mental da população mundial ainda parecem longe do fim. Médicos como o norte-americano Victor Tseng chamam atenção para o que denominam como a quarta onda da pandemia: o crescimento de casos de ansiedade, depressão e suicídios motivados pelas várias perdas que o coronavírus provocou. Milhões de pessoas em todo o mundo perderam entes queridos, empregos ou projetos, enquanto o distanciamento social impossibilitou a despedida dos que se foram e o contato com redes de apoio formadas por familiares ou amigos. De maneira muito repentina, a realidade foi profundamente alterada tanto em nível individual quanto coletivo. 

Quando a pandemia ainda começava no Brasil, a professora e pesquisadora Deisy Feitosa testemunhou o sofrimento de um grande amigo ao perder o pai para a covid-19. Apenas duas pessoas puderam participar do velório. “Ficou a sensação de que ele não tinha ido de fato, porque não foi possível dar adeus, fazer aquele ritual de despedida”, conta. Na mesma época, um amigo, morador de uma pequena cidade da Itália, relatou uma reportagem da TV local: em apenas um mês, chegaram a acontecer 80 velórios. Impossibilitados de realizar a tradicional missa de corpo presente, os familiares consideravam que seus parentes não podiam ter uma morte digna.

Algumas semanas mais tarde, Deisy também sentiria essa dor na pele. Seu avô morreu vítima do coronavírus. Para reunir a família e amigos em orações e outros rituais de despedida, foi preciso recorrer a plataformas digitais. Para a pesquisadora, era impossível não fazer uma comparação entre essas experiências e o momento em que ela perdeu o pai, aos 12 anos, e pôde fazer uma cerimônia de adeus tradicional, contando com o abraço e o apoio dos seus. 

Foi então que Deisy – atualmente realizando seu pós-doutorado no Diversitas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), sob a supervisão do professor Sérgio Bairon e co-supervisão do professor Almir Almas – pensou: “a gente trabalha com realidade virtual, com diferentes realidades. Será que a gente poderia pensar em formas de realizar rituais de despedida de uma maneira imersiva? Que de certa maneira a gente pudesse proporcionar a esses familiares e amigos uma despedida via realidade aumentada, já que a gente não pode ter o contato físico por conta da pandemia?” Nascia o Projeto Transcender, uma plataforma on-line para a realização de cerimoniais de despedida e memoriais em homenagem a pessoas falecidas. 

Montagem com a foto do exemplo de pessoa falecida ao centro. Ao seu redor, estão dispostos áudios, textos, fotos e vídeos, como em um mural virtual. O mural tem a aparência de uma trama na cor marrom, inserida em um cenário virtual em que predominam tons de azul.
Exemplo de memorial do Projeto Transcender. O memorial é composto por arquivos de texto, áudio, foto e vídeo enviados pelos usuários convidados. Imagem: Projeto Transcender/ LabArteMídia. 

Aproveitando o chamado que a USP divulgou em abril para o desenvolvimento de pesquisas relacionadas à pandemia e suas consequências, Deisy apresentou a ideia para o LabArteMídia, grupo de pesquisa liderado pelo professor Almir Almas e vinculado ao Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR) e ao Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA). A proposta foi acolhida de pronto e logo tiveram início as investigações preliminares, por meio do contato com Wellington Zangari, professor do Instituto de Psicologia (IP) e coordenador do InterPsi, grupo que desenvolve pesquisas sobre o luto, entre outros temas. “A gente entendeu que o luto, quando não é vivido da maneira 'correta', quando não é vivido através de todos os rituais, se prolonga”, conta a pesquisadora. 

Hoje, além do laboratório do IP, o projeto também conta com a parceria do Laboratório de Robôs Sociáveis, da Escola Politécnica (Poli), coordenado pelo professor Marcos Barretto. Ao todo, atuam no Projeto Transcender 22 pesquisadores de diversos campos, da graduação ao pós-doutorado: cinema, arte, direito, jornalismo, comunicação, engenharia, ciência da computação, psicologia e ciência das religiões. 

 

Versão beta da plataforma

Com financiamento inicial concedido pela Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia (FDTE), da Poli, os pesquisadores concluíram a primeira etapa de investigações e encontram-se na fase final de desenvolvimento da versão beta da plataforma. Essa primeira versão terá um serviço de videoconferência, com design inovador e customizável, funções de interação positiva, chat para os convidados e uma ferramenta para upload de textos, áudios, fotos e vídeos, que constituirão um memorial do homenageado. O memorial ficará hospedado na plataforma, podendo ser visitado por amigos e familiares mesmo depois da cerimônia de despedida. “Com esse projeto a gente tenta apoiar as pessoas a elaborarem o luto, a vivenciarem isso juntas, [para] que elas se abracem de uma maneira virtual. A gente traz essa plataforma como algo simbólico, e por isso que também tem elementos simbólicos, que a gente vai proporcionar de maneira customizada, para que as pessoas possam interagir”, explica Deisy.  

As características e as possibilidades de personalização da plataforma foram pensadas levando em conta a liberdade de crença e de culto, de forma a atender o maior número possível de pessoas, incluindo adeptos de religiões minoritárias, agnósticos e ateus. “Você pode colocar um rock'n'roll ou uma Ave Maria de Schubert. É a família que decide. Tudo é customizável”, afirma o professor Almir. “A gente descobriu que o ritual em si, o luto, a passagem, existe em todas as culturas. Não interessa se o ritual da igreja católica é um, o ritual do budismo é outro, o ritual das religiões de matriz africana é outro, o ritual de quem não tem religião é outro. Todos têm um ritual, todos precisam vivenciar essa despedida."  

O docente do CTR destaca também algumas das inovações na programação e no design do serviço: “nós tivemos que reescrever (em termos de código) a plataforma para que ela fosse usada dessa forma que a gente queria, com uma estética mais audiovisual e possibilitando mais imersão e interatividade.” Os principais diferenciais são o design circular, que promove a criação de uma espacialidade virtual mais acolhedora, e as janelas de vídeo móveis, que podem ser posicionadas de acordo com o grau de proximidade em relação ao homenageado, além de permitir a identificação de diferentes categorias por cores (família, amigos, etc.). A direção artística do projeto ficou a cargo de Daniel Lima, doutorando do PPGMPA, que coordenou uma equipe formada por outros orientandos do professor Almir, bolsistas PUB e um funcionário do CTR. 

A primeira versão da plataforma entra no ar em duas semanas, e poderá ser acessada gratuitamente em computadores, tablets e celulares. Para Deisy e Almir, esse serviço atende demandas que vão além do contexto atual de pandemia, servindo como uma ferramenta importante para todas as pessoas que tenham alguma impossibilidade de se deslocar para o funeral de um ente querido. “A gente entende que esse projeto atende uma necessidade mundial”, diz a pesquisadora. 

De acordo com o andamento da pesquisa e a obtenção de novas fontes de financiamento, a perspectiva é aprimorar a experiência em versões posteriores. A ideia é que no futuro o serviço ofereça uma plataforma imersiva em 360º e 3D, acessível por meio de óculos próprios para realidade virtual. Em breve também será publicado um artigo sobre o projeto no livro Pandemídia, uma iniciativa do LabArteMídia que compila reflexões e pesquisas sobre a covid-19 e seus impactos na comunicação e suas tecnologias. Assim como outras iniciativas da ECA, o Transcender faz parte da extensa lista de ações e projetos de pesquisa que a USP vem desenvolvendo para o combate à crise sanitária. 

Em meio ao cenário de desolação geral trazido pela pandemia, é importante reconhecer o papel das tecnologias de informação e comunicação ao possibilitar a recriação e reinvenção de presenças, como diz o artigo assinado pelos pesquisadores do Transcender. A descoberta de novas formas de estar presente e em relação com o outro pode ajudar a resgatar a humanidade que se perde na banalização da covid-19. “É pesado tudo que a gente tá assistindo agora. As pessoas acabam sendo números. Querendo ou não, elas são números: mais um falecido, etc”, diz Deisy, que confessa ainda como esse trabalho tem modificado sua relação com a morte: “pra mim a morte sempre foi muito pesada, por causa da morte do meu pai, e eu sempre fugi um pouco desse tema. E aí, depois que eu estou nesse projeto, que eu assisti vários seminários sobre o luto, sobre a importância de falar sobre isso, a naturalidade da morte como uma coisa que faz parte da vida, acho que isso passou até a ser ressignificado na minha cabeça, então é bonito a gente poder [por meio do Projeto Transcender] tratar isso com a delicadeza que requer.”

 


Imagem de capa: Maria Ponomariova /Getty Images